Do que não tem cabimento

A adolescência é uma profunda experiência de separação: do corpo, das construções da infância, da autoridade dos pais. Essa separação se produz, sobretudo, no encontro com Outro corpo e sua forma primeira é o próprio corpo no atravessamento de uma metamorfose – que é, de acordo com Freud, a puberdade. Uma mudança no corpo que produz efeitos no modo de gozo, mudança que causa estranhamento e exílio porque embora haja o encontro com a sexualidade, ela não pode ser experimentada de forma complementar[1]. A adolescência é também uma construção[2] muito singular porque se trata, podemos dizer com Lacan[3], de uma nova montagem pulsional quando ela deixa de ser predominantemente auto-erótica, como explica Freud nos Três ensaios, e encontra (ou reencontra) o objeto sexual[4]. Esse encontro é com o real da não-relação, que é também o encontro com a falta, a inconsistência do Outro, com o enigma do feminino, como nos dizia Maria do Rosário recentemente. Por isso Lacan dirá que “o véu não mostra nada eis o princípio da iniciação”[5], ou seja, a sexualidade faz um furo no real em torno do qual o ser falante terá que montar suas hipóteses, sustentar seu desejo, produzir e se apropriar de seu corpo. E essas não são operações simples, porque algo sempre resta como estranho, como fora da imagem, o que Lacan chamou de objeto a. A adolescência é mesmo esse descabido, a apresentação de um excesso no corpo e que procura um lugar na língua, um momento em que se faz necessário um esforço de elaboração para dar conta dessas separações e encontros e se situa em lugar muito específico porque se é convocado à construção de um lugar de enunciação, como explica Cristina Drummond: “temos então em mente que essa operação que diz respeito à enunciação e sua relação com aquele que fala e se conta é o passo lógico que diz respeito à construção feita na adolescência. Se essa operação implica no conceito, algo do que escapa ao saber vai ter de se alojar em outro campo, para além do inconsciente e do édipo. Esse passo lógico é o que podemos chamar de esforço de enunciação, esforço de dizer algo sobre o indizível, esforço de se contar como um”[6]. Trata-se, então, de falar e não apenas ser falado, de contar e não ser apenas contado, de operar com um vazio que comporta toda enunciação para que se possa rearticular algo do fantasma e do falo porque o adolescente deixa, justamente, sua posição de criança fálica e se confronta com um fora do sentido, um gozo – esse descabido –, instalado no próprio corpo.

Desse modo, podemos pensar que esse esforço de enunciação, que será também o esforço de elaborar algo desses encontros sempre faltosos, é o que permitirá enlaçar sintomaticamente corpo e imagem. Não é por acaso que os adolescentes criam uma língua própria, cheia de variações e metamorfoses, uma língua estrangeira dentro da própria língua. Talvez esta língua seja um meio para a construção desse lugar de enunciação. O que mostra que a adolescência é muito mais da ordem do discurso que dos fenômenos. Nas redes sociais, por exemplo, temos uma variedade impressionante de memes, de hashtags, de campanhas que se tornam virais e que mostram uma nova forma de laço já não mais sustentado no sentido das coisas do mundo, mas na forma, justamente esvaziada de sentido, que pode contaminar, ser apropriada, viralizar, e produzir efeitos tão imediatos quanto inéditos, alguns interessantes, outros nefastos, enfim, uma nova configuração do modo de estar junto, de uma nova forma de organização, de ocupação do mundo, de apresentação diante do mundo que passa, por exemplo, por uma ampla plataforma de nomeações em relação a sexualidade. Tudo acontece no mundo virtual e que não é outro mundo senão o nosso, onde, diz Miller, “o saber está no bolso, não é mais o objeto do Outro”[7]. Pois bem, há aí, ou ao menos, pode haver aí um saber, um saber que precisamos ouvir e permitir que ele nos ensine porque ele diz sobre o futuro, mais especificamente, sobre o futuro da psicanálise. No texto A terceira Lacan menciona os gadgets quando pensa sobre o futuro da psicanálise. Ele diz:

o futuro da psicanálise depende do que advirá desse real. As bugigangas, por exemplo, será que realmente tomarão a dianteira? Chegaremos a nos tornar nós mesmos realmente animados pelas bugigangas? Isso me parece pouco provável, devo dizer. Não chegaremos realmente a fazer com que a bugiganga não seja um sintoma. Por ora ela o é, absolutamente evidente. É certo que alguém tenha um carro como uma falsa mulher. As pessoas cuidam definitivamente para que isto seja um falo, mas só tem relação com o falo pelo fato de que é o falo que nos impede de ter uma relação com algo que seria nosso correspondente sexual[8].

Passado alguns anos dessas hipóteses de Lacan, podemos constatar que, por um lado, existem os discursos que apresentam os gadgets como a tentativa ou a promessa de fazer existir a relação a sexual, por outro, mostra Lacan, caberá ao analista tomá-los como sintomas, porque é com o sintoma que podemos ir contra os discursos que tentam fazer desaparecer o real; uma aposta que pode haver nesse uso algo novo, uma invenção, veja-se, por exemplo, a ampla mobilização política da juventude que usa as redes sociais como meio de organização e divulgação.

Há algo de muito novo em toda e qualquer juventude. A passagem e a leitura do tempo, a mudanças na relação com o Outro é dita por eles que veem o mundo de um outro lugar. Essa travessia tortuosa, de desencontros que atualizam o desamparo, que materializam a inadequação, apontam para a inexistência de uma equivalência. Não saber sobre o que os jovens fazem, não falar a sua língua, implica aprender com eles, apostar nos arranjos das suas experiências. Não se trata, então, de fazer equivaler, como dizia, de uma conformação, de adaptação: a experiência analítica mira a diferença absoluta. É construir pontes de equilíbrio frágil que tramam novos rumos por onde o desejo poderá correr com os sonhos antes jamais sonhados, é dar tempo e lugar ao que transtorna e transforma, ao que não tem cabimento, para que se possa inventar com isso que não é outra coisa senão a marca indelével da vida.

texto apresentado no XIII Colóquio da EBP-PR Encontros na adolescência: corpo, desejo e gozo

[1] Lacadée, P. O despertar e o exílio: ensinamentos psicanalíticos da mais delicada das transições, a adolescência. Rio de Janeiro: Contra Capa Livraria, 2011.

[2] Miller, J-A. Em direção à adolescência (2015). Disponível em http://minascomlacan.com.br/blog/em-direcao-a-adolescencia/

[3] Lacan, J. O Seminário, Livro 11, Os quatro conceitos fundamentais da psicanálise (1963-1964). Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2008.

[4] Freud, S. “Três ensaios sobre a sexualidade” (1905). In: Obras Completas. Rio de Janeiro: Imago, v.VII, 1996. p. 163-195. Seguindo a leitura dos texto de Daniel Roy, podemos dizer que esse reencontro é com o furo que marca a impossibilidade de uma plenitude mítica – de uma relação complementar – que foi encoberto pelo amor dos pais na infância. Roy, Daniel. Metamorfose (2016). Disponível em: http://minascomlacan.com.br/blog/qqpega-03-metamorfose-daniel-roy/

[5] Lacan, J. “Prefácio a O despertar da primavera” (1974). In: Outros Escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2003.

[6] Drummond, C. Adolescência: um esforço de enunciação (2016). Disponível em: http://www.encontrobrasileiro2016.org/#!um-esforco-de-enunciacao/ldayg

[7] Miller, J-A. Em direção à adolescência (2015). Disponível em http://minascomlacan.com.br/blog/em-direcao-a-adolescencia/

[8] Lacan, J. “A terceira” (1974). In: Opção lacaniana, n. 62. São Paulo, Ed. Eolia, dezembro de 2011.

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