Esta palavra, tantas vezes
aplicada sem pensar, preciso dela aqui
e já não me serve.
Joan Brossa.
Minha questão nesse texto é fazer uma primeira tentativa de esclarecer alguns pontos do que podemos entender como adolescência em psicanálise já que não figura dentre seus conceitos. Trata-se de uma pesquisa em curso. Uma primeira constatação me leva a pensar que só é possível definir um adolescente na clínica. E isso se dá através da singularidade do mal-estar que se apresenta para um sujeito, de seus sintomas, encontros, mudanças, impasses, história. O que frequentemente se constata como adolescência – a agitação e mudança nos corpos, transgressões, idade, etapas de desenvolvimento, etc. – corresponde a uma concepção sociológica e comportamental, tanto é que, até mesmo na infância, haveria uma adolescência: o terrible two ou o threenager. Essa definição está muito mais ligada ao que se entende como crise da adolescência ou o que se convencionou chamar com o neologismo aborrescência que coloca em um limbo de resposta pronta para que não se precise ouvir o que um jovem tem a dizer. A essas manifestações chamaremos de sintomas e, com Stevens[1], diremos que a adolescência é um sintoma da puberdade. Sintomas que serão orientadores na clínica e na cultura porque eles respondem sobre o mal-estar desta ao mesmo tempo que dizem algo singular do desejo. Os jovens, mais do que em crise, são uma bússola para as crises, suas invenções inéditas estão sempre na vanguarda das épocas. Com eles temos muito a aprender.
Na clínica se temos na adolescência uma crise, é porque tomamos o seu sentido etimológico de separação. Dentre as muitas que teremos na vida, a adolescência aponta para uma profunda experiência de separação: do corpo e dos significantes da infância, dos pais quando precisa se dirigir ao Outro social sem a garantia destes. “Vais encontrar o mundo, disse meu pai, à porta do Ateneu. Coragem para a luta”, nos conta Sérgio, personagem de Raul Pompeia que narra tão bem o momento de saída da infância. Essa separação se produz, sobretudo, no encontro com Outro corpo. E um deles é o próprio corpo no atravessamento de uma metamorfose – que é, de acordo com Freud, a puberdade. Uma mudança no corpo que produz efeitos no modo de gozo, mudança que causa estranhamento. Clarice Lispector o diz lindamente em seu conto O primeiro beijo: “Sofreu um tremor que não se via por fora e que se iniciou bem dentro dele e tomou-lhe o corpo todo estourando pelo rosto em brasa viva. Deu um passo para trás ou para frente, nem sabia mais o que fazia. Perturbado, atônito, percebeu que uma parte de seu corpo, sempre antes relaxada, estava agora com uma tensão agressiva, e isso nunca lhe tinha acontecido. Estava de pé, docemente agressivo, sozinho no meio dos outros, de coração batendo fundo, espaçado, sentindo o mundo se transformar. A vida era inteiramente nova, era outra, descoberta com sobressalto. Perplexo, num equilíbrio frágil”.
Sabemos que, para Lacan, não somos um corpo, mas temos um corpo[2]. É preciso então de uma apropriação para poder habitá-lo. O que não é simples, porque há algo do corpo que sempre resta como estranho, como fora da imagem que o unifica. Não se trata então de domesticar um corpo, mas de habitá-lo nesse lugar equívoco entre a língua e a imagem. A puberdade aprofunda essa relação de estranhamento colocando em crise o corpo, sua imagem, as identificações e os recursos simbólicos que se tinha para dar conta das hipóteses sobre a sexualidade. Não é por acaso que os adolescentes criam uma língua própria, uma língua estrangeira dentro da própria língua. Justamente porque falar, tomar a palavra sem a tutela dos pais, implica um risco, por exemplo, o de desejar. O que mostra que a irrupção da puberdade é muito mais da ordem do discurso que do fenômeno.
A adolescência é, então, uma construção, como lembra Miller[3]. É uma construção muito singular porque se trata, podemos dizer com Lacan[4], de uma nova montagem pulsional que passa por outro corpo. Ela deixa de ser predominantemente auto-erótica, como explica Freud nos Três ensaios, e encontra o objeto sexual[5]. Mas Freud também diz que esse encontro é da ordem do reencontro. Seguindo a leitura dos texto de Daniel Roy[6], podemos dizer que esse reencontro é com o furo que marca a impossibilidade de uma plenitude mítica que foi encoberto pelo amor dos pais na infância, em suma, o encontro com o real da não-relação. Por isso Lacan dirá que “o véu não mostra nada eis o princípio da iniciação”. Ou seja, a sexualidade faz buraco no real em torno do qual o ser falante terá que montar suas hipóteses, sustentar seu desejo, construir seu corpo uma vez que as construções da infância não contemplam a nova posição requerida.
Hoje, contudo, os encontros prescindem dos corpos. O mundo acontece nas redes sociais. Essa virtualização dos corpos, por exemplo, implicaria no curto-circuito dessa passagem, dessa volta a mais que o adolescente pode fazer no corpo do Outro? É bem possível, e as consequências disso ainda estamos recolhendo. Mas isso não quer dizer que as coisas tenham melhorado ou piorado, nem mesmo simplificado. Sozinho no meio dos outros, um adolescente ainda porta um corpo que não tem lugar. Essa metamorfose, esse corpo estranho que solicita uma nova relação com a imagem, o gozo estrangeiro que se funda, inicia o turbulento debate dos corpos. À deriva em um mundo de desidealização e ampla multiplicação de objetos, a relação com o Outro, e consequentemente seu modo de estar no mundo, se fragiliza mais ainda. O que o encontro com um analista pode estabelecer é uma parceira que não seja nem pela via de um apelo ao pai dos ideais nem pela via da tirania do imperativo de gozo. É acolhendo o sintoma, nossa política e nossa orientação clínica, podendo ouvir as experiências desses seres falantes, e assim ir construindo lugares – sempre transitórios –, para que não haja apenas a vertigem do que não cessa de não se escrever, mas o contorno de linhas tortas, tênues e permeáveis por onde poderá caminhar o desejo na complexa tessitura da vida.
[1] Stevens, A. Adolescência, sintoma e puberdade, 1998. (publicado originalmente em Les Feuillets Du Courtil, n.15).
[2] LACAN, J. “Joyce, o Sinthoma” (1975). In: Outros Escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2003.
[3] Miller, J-A. Em direção à adolescência (2015). Disponível em http://minascomlacan.com.br/blog/em-direcao-a-adolescencia/
[4] Lacan, J. O Seminário, Livro 11, Os quatro conceitos fundamentais da psicanálise (1963-1964). Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2008.
[5] Freud, S. “Três ensaios sobre a sexualidade” (1905). In: Obras Completas. Rio de Janeiro: Imago, v.VII, 1996. p. 163-195.
[6] Roy, Daniel. Metamorfose (2016). Disponível em: http://minascomlacan.com.br/blog/qqpega-03-metamorfose-daniel-roy/
[texto apresentado no Encontro do CIEN e da NRCEREDA: Saídas da infância: escolhas do sujeito]