Monocultura

Este texto foi apresentado na IX Jornada da EBP-SC: Psicanálise, crenças, leis, no dia 22/08/2014.

Monocultura

Miquel Bassols em recente entrevista concedida ao XX Congresso da EBP nomeia os três objetos, ou melhor, os três sujeitos tomados como objeto sobre os quais a violência se assevera. São eles: a mulher, ou a feminilidade; a criança, ou o infantil; e o louco, ou a loucura. Gostaria de acrescentar a esta tríade, um quarto objeto, este mesmo levantado por Bassols nas entrelinhas da entrevista quando menciona Lévi-Strauss[i], um quarto sujeito tomado como objeto: o índio – que forma, com os outros três, o quarteto das vanguardas do início do século XX. Uma preocupação me motiva neste texto: “a ofensiva final”[ii] contra as populações indígenas no Brasil. Aqui a tomarei como paradigma da violência engendrada pelo discurso capitalista e seus congêneres: o Estado e a religião. Os três lugares desta Jornada amarram o nó com o qual podemos ler este tema: a psicanálise, por seu laço estreito com a antropologia e, mais ainda, por apostar que sua contribuição é a capacidade de sustentar uma “organização lógica entre o Uno e o Múltiplo (…) que não tenha a integração a qualquer preço”[iii], tema central do texto; a crença, pensada aqui como religião; e a lei, como o espírito capitalista do progresso, a ortopedia desenvolvimentista.

Parto então da definição de racismo de Jacques Lacan, a saber, não suportar o modo de gozo do Outro: “Deixar a esse Outro seu modo de gozo, eis o que só se poderia fazer não impondo o nosso, não o considerando como um subdesenvolvido. […] como esperar que se prossiga o humanitarismo sentimentaloide de encomenda com o qual se vestem nossas atrocidades?”[iv]

Acrescento ao conceito de racismo de Lacan, a problemática levantada por Levi-Strauss em seu texto Raça e História, citado por Bassols, quando diz sobre um possível inventário das culturas humanas: “devemos conscientizar-nos que as culturas humanas não diferem entre si do mesmo modo, nem no mesmo plano”[v]. Não se trata, portanto, de um relativismo, ou seja, de um ponto de vista sobre um mundo comum, mas de um perspectivismo, i.e., de mundos totalmente diversos de onde partem as perspectivas: “todos os seres veem (“representam”) o mundo da mesma maneira — o que muda é o mundo que eles veem”[vi]. E não é essa a posição do analista, a de não responder de seu fantasma, seu mundo, mas poder escutar o mundo que o analisante vê? “Todas as coisas do mundo veem colocar-se em cena segundo as leis do significante, leis que de modo algum podemos tomar de imediato como homogêneas às do mundo”[vii], dizia Lacan em uma crítica à noção de homogeneidade do Cosmos. E aqui vale notar uma diferença fundamental com a religião: esta trata o mundo de um ponto de vista onisciente, o de Deus, ao qual nunca se tem acesso total e que é passível de interpretações sobre um mundo único, o Dele.

O caso dos povos indígenas me parece emblemático para pensar o racismo: a imposição de um modo de gozo a quem se julga subdesenvolvido justamente por não se considerar as perspectivas de mundos. Este gozo é fundamentado na mais-valia, no mais-de-gozar que está intimamente atrelado ao discurso do desenvolvimento, que é também, de acordo com Lacan, o discurso do capitalista[viii]. Partamos, então, de uma prerrogativa já senso comum: a “improdutividade” dos indígenas que alimenta toda querela da demarcação de terras.

Se desde o “descobrimento” se dava a América por vazia, notamos ainda hoje que a perspectiva não se altera: “Terra sem homens para homens sem terra”, bradava, justamente, o Plano de Integração Nacional do Médici. Mais recentemente, o Ministro para Assuntos Estratégicos, Mangabeira Unger, disse que a “Amazônia é uma coleção de árvores” e mais: “temos um compromisso sagrado com os índios, que são pessoas, e todas as pessoas são espíritos que desejam transcender” e o destino do homem é “ser grande, divino”. Falas do tipo: “as áreas produtivas devem ser de segurança nacional”, ou ainda a criação de fundos para amparar a produtividade em terras demarcadas, revela uma atuação perversa de incluir no campo econômico quem está fora dele. O antropólogo Viveiros de Castro vem insistindo neste ponto, na tentativa de converter índio em pobre para assim poder captura-lo nas malhas do discurso capitalista. Um perfeito exemplo de integração que gera, necessariamente, segregação e violência. Ganha quem produz objetos e quem converte o mundo em objeto. Daí que a terra se converta em cesta básica; a pesca se converta na distribuição de peixes congelados, a subsistência, em programa social.

Um plano de homogeneização que, como vislumbrou Guy Debord, gera um Planeta Doente, o que vem se agravando com o uso intensivo de agrotóxicos, por exemplo, o envenenamento do subsolo que altera completamente a dinâmica da população dos organismos vivos e diminui a diversidade, e que mostra um plano cultural produtivista refletido na sua face mortal: a monocultura. E este não é um dado menor: lembremos que o termo cultura vem de agricultura. Monocultura que se expande, por outro lado, na massiva evangelização nas aldeias, um verdadeiro “mercado das almas selvagens”[ix], cujas proporções etnocidas são verificadas diariamente. O plano de salvação das almas obedece estritamente ao projeto capitalista: além de fazer crer em deus e na palavra de deus, quer-se, sobretudo, dar “dignidade” e condições de “humanidade”. Uma coisa leva a outra: com o desaparecimento das cosmologias e costumes, não resta outra senão entrar no “sistema”[x]. Portanto, o argumento consolidado das benesses da evangelização, reconhecidos, sobretudo, na máxima: melhor estar na Igreja do que ser um criminoso, cai por terra.

Daí que possamos denotar a atmosfera de fim do mundo, ou fim de mundos, que ronda a contemporaneidade. Podemos apreciá-lo nos discursos indígenas, Davi Yanomami fala da Queda do Céu e ele mesmo viu seu povo ser dizimado com a Perimetral Norte aberta na Ditadura. Mas podemos constatar também no cinema e nas séries americanas nos quais a figura dos zumbis aparece mostrando que toda civilização é barbárie, que a civilização, levada a cabo, nos seus aparatos científicos depuradores das diferenças, por exemplo, é ela mesma a barbárie. Que o “estado de natureza” ao qual é necessário civilizar, ou fazer chegar o Espírito, é o produto, o efeito, da civilização e não o seu começo. Tudo se parece com uma gigantesca ficção científica, mas faço jus à prerrogativa de Lacan, qual seja, a de que a ficção científica é a única ciência que deve ser levada a sério e seguida[xi]. Que faz a religião neste prenúncio de fim de mundo? Seria uma restauração do mundo? Mas de que mundo? Não estaríamos em uma “ordem sem discurso”, isto é, uma ordem regida por um falso discurso como é, segundo Lacan, o capitalista, que teria como consequência o racismo e a violência? E a religião seria o discurso que suplementa[xii] o falso discurso capitalista alimentando-o de sentido?

Quem formula primorosamente uma pista desta fragilidade do laço como consequência desta ordem sem discurso é Davi Kopenawa. E termino com ele: “Os brancos nunca pensam nessas coisas que os xamãs conhecem, é por isso que eles não têm medo. Seu pensamento está cheio de esquecimento. Eles continuam a fixá-lo sem descanso em suas mercadorias, como se fossem suas namoradas”[xiii].

[i] Bassols cita o relatório que Lévi-Strauss escreveu para a Unesco. Lévi-Strauss, C. Raça e História. Em: Antropologia Estrutural II. 4.ed. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1993.

[ii] O termo é de Eduardo Viveiros de Castro. Em 2013 foi “encontrado” o Relatório Figueiredo produzido em 1966 que relata o extermínio de aldeias inteiras, torturas e outras barbaridades cometidas contra os indígenas na Ditadura Militar. O Relatório era dado como perdido em um suposto incêndio em 1967. Dados atuais, entretanto, não deixam dúvidas de uma situação complicada: a reserva de Dourados, por exemplo, tem um índice de assassinato de 145 para cada 100 mil habitantes, entre 2003 e 2010. No Iraque o índice é de 93 pessoas para cada 100 mil. Os dados mais alarmantes são os do povo Guarani Caiová, no Mato Grosso do Sul: “Desde 2000, foram 555 suicídios, 98% deles por enforcamento, 70% cometidos por homens, a maioria deles na faixa dos 15 aos 29 anos. No Brasil, o índice de suicídios em 2007 foi de 4,7 por 100 mil habitantes. Entre os indígenas, no mesmo ano, foi de 65,68 por 100 mil. Em 2008, o índice de suicídios entre os Guaranis Caiovás chegou a 87,97 por 100 mil, segundo dados oficiais”. “com a segunda maior população indígena do país, Mato Grosso do Sul é o Estado líder em assassinato de índios. Ganha da soma de todos os outros juntos. Nos últimos oito anos, ocorreram 250 homicídios de indígenas no Estado, ante 202 no resto do Brasil. Quase todas as vítimas eram guaranis-caiovás”. “a fome ainda assombra os guaranis-caiovás. Em 2005, houve um surto de mortes de crianças por desnutrição. A mortalidade infantil é de 38 óbitos para cada 1.000 nascimentos, ante a média de 25 no resto do Brasil”.

[iii] Bassols, M. Entrevista para o XX Encontro Brasileiro do Campo Freudiano. Disponível em: http://www.encontrocampofreudiano.org.br/2014/05/entrevista-bassols.html

[iv] Lacan, J. Televisão. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1993, p. 88-89

[v] Lévi-Strauss, C. Idem, p. 330.

[vi] Castro, E.V. Os pronomes cosmológicos e o perspectivismo ameríndio. Mana. vol.2 no.2 Rio de Janeiro outubro de 1996.

[vii] Lacan, J. O Seminário. Livro 10: a angústia, p. 42-43.

[viii] “o mais-de-gozar, assim como a mais-valia, só é detectável num discurso desenvolvido que não se cogita de discutir que possamos definir como o discurso do capitalista” Lacan, J. O Seminário. Livro 18: de um discurso que não fosse semblante. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2009, p. 46-47.

[ix] Milanez, F. O mercado das almas selvagens. Revista Rolling Stones, dezembro de 2011.

[x] O depoimento de Davi Kopenawa neste sentido é revelador: “O missionário não é como garimpeiro. É outro político. Eles não invadiam a terra, mas a nossa cultura, a nossa tradição, o nosso conhecimento. Eles são outro pensamento para tirar o nosso conhecimento e depois colocar o conhecimento deles, a sabedoria deles, a religião deles. Isso é diferente. Eu, Davi, já fui crente. Junto com eles. Mas depois queria conhecer Jesus Cristo. E não deu certo.” Isto remonta à famosa anedota contada por Levi-Strauss: “Nas grandes Antilhas, alguns anos após a descoberta da América, enquanto os espanhóis enviavam comissões de investigação para pesquisar se os indígenas tinham ou não uma alma, estes últimos dedicavam-se a imergir brancos prisioneiros, a fim de verificar, após uma vigília prolongada, se seu cadáver estava ou não sujeito à putrefação”. Trata-se aí da diferença fundamental de perspectivas: aos europeus interessava saber se tinham alma, aos índios, se tinha corpo.

[xi] “Para mim a única ciência verdadeira, séria, a ser seguida, é a ficção científica”. Entrevista de Jacques Lacan a Emilio Granzotto em fevereiro de 1974. Disponível em:

http://pt.scribd.com/doc/218912490/Entrevista-1974-Magazine-Litteraire

[xii] Suplemento porque justamente o capitalismo é um falso discurso e funciona assim. “Isso se consome e se consome tão bem que isso se consuma”. O sentido não é um problema do capitalismo, ele não precisa gerar sentido para sobreviver, mas, no entanto, sem sentido, ele não sobrevive – daí o pior das suas alianças, por exemplo, com a ciência.

[xiii] Kopenawa, D. Descobrindo os brancos. Disponível em:

Clique para acessar o descobrindo_os_brancos.pdf

3 opiniões sobre “Monocultura

  1. olá Flávia, acompanho seu blog há algum tempo e tinha deixado separado esse texto para ler com calma. ainda estou engatinhando no universo da psicanálise, mas são palavras como as suas que me fazem insistir na caminhada. obrigada 🙂

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