Escrever a palavra partir é uma forma de escrever o que se encontrou para deixar partir, para deixar-se partir, dividindo o tempo “em partículas de segundos, dando a cada uma delas uma vida insubstituível”, como dizia Clarice.
Já disse mil vezes e vou repetir (rs): Lacan diz que a experiência de uma análise é a chance de voltar a partir. Dá para ler de tantos jeitos essa frase: voltar a partir de algum lugar conhecido, voltar a partir para o desconhecido, voltar a partir como quem vai embora, voltar a partir como partilha. Voltar a partir é um exercício de (re)começo, meio assim, ao modo haroldiano de Galáxias. Mas é um poema de Ana Martins Marques, publicado em Como se fosse casa, livro escrito com Eduardo Jorge que fala tão bem desse movimento de partir, morar, a partir. E os fragmentos que seguem são os ecos desse poema.
Ela imaginou que ali seria um bom lugar
para não pensar tanto em si mesma
prestar mais atenção
no mundo
um novo contrato com as coisas
ela pensou, talvez,
seguir rigorosamente o regulamento
de um prédio (isso se parece
com um plano)
morar no fracasso de um projeto
no futuro tal como ele era
o passado nunca é pessoal, ela pensou,
talvez, mas o presente sempre
alguma beleza nosso, não propriamente
beleza, não exatamente nisso
Envelhece mal o futuro, sempre?
*
Talvez fosse preciso aprender sobre morar
com aqueles que frequentam a madrugada
ou o mar
e conhecem essas horas imprecisas
nem noite nem manhã
expostos às tormentas ou à luz titubeante
de bares que não fecham
entoando ou não canções de arrebentação
ou de naufrágio
diante do azul ilimitado ou de um cemitério
verde
de garrafas
entre coisas ruidosas ou quietas
vendo a linha do dia pouco a pouco
comendo (vermelho) a linha da noite
na rua como diante do mar
*
(Espera: estou inventado uma língua
para dizer o que preciso)
*
A cura está no tempo, dizem
mas, ela pensa, por que não
no espaço?
ou antes não há cura
a vontade de partir antecede sempre
a casa
estamos para ir
prestes, mas não prontos
só vigor e vontade
lar, ela pensa, é sempre lá
(talvez, lançar-se)
*
E tudo afinal talvez se resuma ao fato de morar numa língua
que distingue ser e estar, morar no intervalo entre
essas duas palavras, ser ali onde se está
ou estar assim como se é
toda lei é
da língua?
*
Sobretudo não falar de amor
mas preservar seus gestos, sua coreografia
de ternura e pânico
sua repetição, seu ritmo
amar ainda as imagens, sim
não propriamente amar, não exatamente
as imagens
apenas uma língua muito antiga
que aprendemos mal, à peine
sem conhecer sua lei
oral, mas somente fragmentos
de velhos poemas,
contabilidades, restos
de música, destroços
de um decreto, um tratado
astrológico, catálogos
de barcos, armas, utensílios
sem nem ao menos saber
se contrato ou canção
solidão
Fala-se sempre sozinho, diz Lacan, mas isso não quer dizer que falar da solidão seja algo simples. Sua forma e matéria variam para cada um. Talvez por isso a encontremos com mais desenvoltura na poesia, essa forma de escrita que sabe que toda fala está aquém ou além da comunicação. Maurice Blanchot dizia que a solidão é uma ferida do mundo a qual está condenada toda forma de escrita poética porque esta transforma a língua, porque o mundo é completamente transformado nesta experiência que se funda em uma “solidão essencial”. Em Blanchot conseguimos discernir uma solidão que não é apenas da ordem do fenômeno, mas também um efeito da língua, de sua metamorfose. Isto talvez seja mais fácil de vislumbrar neste trecho de Alejandra Pizarnik em La palabra del deseo: “La soledad no es estar parada en el muelle, a la madrugada, mirando el agua con avidez. La soledad es no poder decirla por no poder circundarla por no poder darle un rostro por no poderla hacer sinónimo de un paisaje. La soledad sería esta melodía rota de mis frases”. A solidão não é apenas estar sozinho, é uma ruptura, uma fratura na frase. Eu formularia assim: a solidão essencial como condição da escrita se dá porque só se pode escrever, e muitas vezes viver, na fratura da língua.
separar
Tem um outro poema de Ana Martins Marques em que ela diz que quando acontece uma separação extingue-se também uma língua. Mas uma língua nunca acaba totalmente, ela pode ser fraturada e rompida. Muito embora, diante desse forçamento, a única coisa que nos reste seja criar outra língua. Nos separamos das línguas que falamos, das línguas em que fomos falados, das inúmeras formas de dizer o que há ali de nomeável. Mas não há ponto zero da língua a que se retorna. Não há impessoalidade, por mais que se tente, em uma língua. Para todo fim, para qualquer meio e para todo começo é preciso inventar uma língua.
começar
Até chegar na boca, a morada da língua propriamente dita. Essa coisa feita de músculo e força que muitas vezes interrompe conversas, irrompe no silêncio, que se atravessa no tempo e no espaço como se não pudesse esperar. Há uma urgência da língua. E só cabe a ela dizer alguma coisa no e do inaudito do encontro. Tudo é superfície. Reparem que as coisas só mudam aí. E, por isso mesmo, mudam muito. A começar pela pele. Deleuze gostava muito da frase de Valéry: o mais profundo é a pele. As alterações dos primeiros contatos se sentem na pele. Na aspereza de um ponto no rosto, na posição inédita que se toma quando dois corpos se abraçam. As peles se estranham e isso só acontece quando elas se aproximam. Os encontros, pensava esses dias, mesmos esses aí que temos hoje de zoom ou o que o valha, quando são encontros, daqueles que falava spinoza, funcionam como um acelerador de partículas. O tempo e o espaço se modificam e se cria o desconhecido. A forma de conhecê-lo, pensava também, é a língua. Talvez porque seja mediado, irremediavelmente, por ela e, eventualmente, possamos dizer que todo encontro é o encontro com uma língua que tem suas marcas, seus traços, suas histórias, que nos confronta com certa pobreza da língua, no sentido que Benjamin dizia da experiência, com seus cacos – e talvez não seja muito mais do que isso mesmo, caco, ruído – mas que carrega consigo essa chance, da qual falava Lacan, de voltar a partir.
a partir
Toda aproximação acontece na língua. Mas em que momento nos tornamos tão íntimos de uma língua inventada a ponto perdê-la? Se fosse o caso, diria que é aqui que a literatura, a poesia, se tornam uma questão vital porque são formas de reinventar a língua. O encontro do texto com o outro, do corpo do texto e desse outro com o desconhecido. A leitura é o coração dessa operação: se quando há encontro, alguma coisa se escreve, sustentá-lo, quem sabe, renová-lo, só seja possível através da leitura, que nunca é exatamente a mesma. Embora se decifre seus traços, suas marcas, é na aventura das entrelinhas que se renova o gosto, que se habita a fratura. E, quiçá, aí também se esboce o que costumamos chamar de amor.