Inumeráveis é um perfil criado nas redes sociais para fazer um obituário dos mortos no Brasil por Covid-19. Essa iniciativa tenta resgatar do acúmulo anônimo dos números, nomes, sonhos, traços das vidas perdidas em meio a uma pandemia que, não bastasse a virulência do vírus, veio aprofundar ainda mais a tamanha desigualdade que nos assola. Inumeráveis conta sobre as vidas onde só se queria contar os corpos. Fernanda Bruno, professora da UFRJ, em uma conferência recente, falava de uma cena que ilustra muito bem o Brasil contemporâneo[1]. Quando se contavam 40.000 mortos no país, a ONG Rio de Paz fez um ato na praia de Copacabana onde cavaram 100 covas rasas e puseram cruzes em cada uma delas. Um senhor, descontente com a manifestação, começou a derrubar as cruzes sob aplausos e gritos de pessoas da calçada que diziam “tira essa esquerda daí”, “manda essa esquerdalha embora”, “Brasil”, “Brasil”. Em seguida, o pai de um jovem de 25 anos que morrera de Covid-19 recoloca as cruzes dizendo que é preciso respeitar os outros, respeitar a dor dos outros. É impossível não se perguntar o que se passa aqui. Como se passa de um gesto a outro? Como se designam essas posições?
Necropolítica
Achille Mbembe, em seu livro Crítica da razão negra, apresenta o racismo que tem como base a identificação do homem não com aquilo que o torna igual aos outros, mas com aquilo que o distingue deles: “tudo que não é idêntico a mim, é anormal”. À pergunta “quem é esse?”, o Ocidente irá responder
“com um conjunto tanto de discursos como de práticas – um trabalho cotidiano que consistiu em inventar, contar, repetir e promover a variação de fórmulas, textos e rituais com o intuito de fazer surgir o negro enquanto sujeito racial e exterioridade selvagem, passível de desqualificação moral e de instrumentalização prática”. É sobre este fundo que se consolidou a razão negra: “trata-se do que se apazigua odiando, mantendo o terror, praticando o alterocídio, isto é, constituindo o Outro não como semelhante a si mesmo, mas como objeto intrinsecamente ameaçador, do qual é preciso proteger-se, desfazer-se, ou que, simplesmente, é preciso destruir, devido a não conseguir assegurar o seu controle total”[2].
Nesse contexto, as diferenças culturais, quando não as “naturais”, aparecem e serão sempre interpretáveis a partir de um modo de gozar homogêneo. Há um Outro que ameaça minha existência e que, por isso, deve ser eliminado. Mas este, alerta Mbembe, foi desde sempre um dos paradigmas da política na modernidade. Nesse ponto em que se constitui um Outro, a integridade da própria imagem é devolvida, e, consequentemente, a identidade deixa de ser um vazio e passa a ocupar o espaço da determinação. Essa determinação será um ponto orientador da possibilidade de matar que exerce a soberania.
Mbembe, contudo, considera que as tecnologias do biopoder já não dão conta de explicar as práticas contemporâneas. À biopolítica e à disciplina, ele acrescenta o necropoder, que ultrapassa a ideia de inclusão e exclusão e coloca, no seu horizonte, o massacre e o extermínio como solução operante, de um lado, na destituição do Estado enquanto detentor do monopólio da violência e, por outro lado, na reconfiguração da guerra como o apagamento das diferenças entre os campos políticos do externo e interno[3]. Se havia regras intrínsecas no regime de soberania em que vigorava a biopolítica, no exercício do necropoder, ou seja, na necropolítica, o que se extingue é justamente seus interditos. Mbembe toma como maior exemplo a Palestina, mas poderíamos incluir muitos outros. A movimentação que Mbembe parece propor neste campo é a abolição, de antemão, da existência do Outro, quando o corpo se converte em objeto passível de extinção. Um ponto de mudança importante para situar aí seria o curto-circuito da palavra, a satisfação imediata da pulsão, que encontra no discurso do mestre contemporâneo a autorização da barbárie e uma política da morte sobre a vida como uma “vontade de morte inscrita no Outro”, que “está a serviço da pulsão de morte do outro”[4].
O que outrora se validava por uma ideia de progresso, de desenvolver o que se considerava subdesenvolvido[5], circula agora em uma espécie de vale-tudo da “competição do mercado”, do “empreendedor de si mesmo”, dos nacionalismos que têm como suplemento e operador fundamental o racismo. Dipesh Chakrabarty, em uma conversa com Bruno Latour[6] sobre os conflitos de proporções planetárias, aponta para isto: um projeto de modernização ou de progresso era capaz de reunir, de criar um espaço comum. E quando até isso se perder, o que está em jogo é a própria ideia de política. Governar para quem? Governar o quê? No Brasil, isso ficou muito claro: na obscena escolha, entre a economia ou a vida, no brado “o Brasil não pode parar”, o que havia, para além da evidente contradição ‘se não há vida, não há economia’, era também a absoluta ausência de um projeto que não o velho conhecido projeto neoliberal já sem o véu de preservação da soberania nacional agravado com o chamado conspiratório vestido de antiglobalismo. A tênue e difícil fronteira entre a biopolítica e a necropolítica ficou muito evidente na frase mais curta, porém não menos eloquente do presidente da República: “e daí?”
Polarização
Um dos lugares comuns para pensar esse cenário é o que se convencionou chamar de polarização na política entendido muito rapidamente como dois lados radicais e equivalentes na sua radicalidade. Muito há de se considerar nessa posição. Um deles, por exemplo, é a relação com as instituições. Como dizia, se o regime da biopolítica ainda atuava em um parâmetro mediado nem que fosse pela suspensão da lei, hoje, como pensar que as instituições “continuam funcionando normalmente”, mas não são consideradas para quase nada? A profunda indiferença com a verdade que se estabelece historicamente e que se consolida nas instituições é um exemplo disso. Por aí, podemos pensar que a polarização pode ser um fato, mas ela está longe de ser simétrica.
Em um texto publicado na revista Serrote, Rodrigo Nunes traça um panorama do que se convencionou chamar de polarização na política[7]. Nele, o autor descreve com agudeza algumas transformações do cenário político contemporâneo e situa a polarização em uma assimetria. De um lado, o limitado, ou o que Paulo Arantes chamou de moderado; do outro, o ilimitado ou sem moderação. É fato que não são campos equivalentes, por mais que se tente colocar radicalizações em cena. E não é preciso muito esforço para reconhecer essas paragens ou a ausência delas: as fake news, os negacionismos, em suma, a destruição em curso que dão mostras diárias da ausência de moderação. Um ponto levantado por Nunes que contribuiu para a construção da “polarização” é a mudança na economia da informação com as redes e a recorrente utilização de eufemismos para contar, por exemplo, os dois lados de uma história, mesmo que um deles não tenha lastro com a realidade.
A polarização assimétrica se associa a outro fenômeno já mais conhecido – as guerras culturais – que vem sobrepor política e costumes como arena de disputa:
uma foi ao mesmo tempo instrumento e consequência da outra. Dito de outro modo, as guerras culturais nunca representaram o substituto da luta política, embora a muitos interessasse que fossem assim pensadas. A moral foi o campo em que a disputa política foi continuada por outros meios, assim como a política institucional tornou-se o terreno onde questões culturais passaram a ser disputadas.[8]
Essa é uma importante passagem das transformações políticas do século XX. Mas há outra, do neoliberalismo progressista ao globalismo, que complica um pouco mais o cenário político. Uma política econômica que mantinha a lógica distributiva intacta e desigual não impedia, por outro lado, que os campos da moral e dos costumes avançassem. A famosa época da globalização pôs em cheque, como diz Miller, a própria ideia de lugar ou a perda de referências[9] que agora se busca, delirante e violentamente, estabelecer em uma ordem sem discurso. Os globalistas, como sugere Nunes, não são os bancos ou as corporações que geraram as crises e sim os estratos médios cosmopolitas, a elite intelectual e os partidos e partidários de qualquer coisa que se apresente como múltipla e distributiva. Nesse espectro se situa a “esquerda”.
Tendo em vista a ideia de polarização assimétrica, é preciso, então, não fazer equivaler tão depressa os movimentos identitários com os segregativos. De um lado, temos uma agenda de reivindicações políticas; do outro lado, o horizonte é o despojamento de direitos e, como costumeiramente temos visto, a morte. A questão é como esses movimentos podem se agenciar, e a dificuldade é dupla. Temos uma política que nega a própria ideia de política por um lado; por outro, a retroalimentação das identidades que tendem a criar um fosso onde poderia haver algo de comum, onde haveria pontos de contato. Ademais, o que se acirra no campo mais abrangente da política é o mero enquadramento da “esquerda”.
Isso nos leva a uma pergunta: se o espectro da “esquerda” é tão amplo, não seria justamente por uma estreiteza do olhar sobre o mundo? Fernanda Bruno fala de um sequestro do futuro. Na psicanálise não costumamos ser tão fatalistas, mas essa hipótese não deixa de ter sua razão, sobretudo se a pensamos como um caminho para a consolidação das monoculturas. Ajudados pelo funcionamento das redes e seus algoritmos, a ideia de diferença é posta em questão mesmo quando há polarização. Apontar os diferentes pouco tem a ver com a ideia de diferença, que é sempre relacional. Com uma máquina muito inteligente que calcula, sugere e testa incessantemente os gostos e preferências, monta-se um panorama (que não exageraríamos de chamar de mundo) a partir de um critério de similaridade formando o que se chama de bolhas. As consequências no laço social são, e sempre serão, incalculáveis, mas seria interessante pensar num âmbito maior em que a articulação e a desarticulação podem convergir para uma proposta e não parar em um imaginário em que as identidades só podem jogar uma partida de vida ou morte.
Atritos
O horizonte de conciliação é inócuo. A construção dos pontos de contato, no entanto, é urgente. Atritos foi o que me ocorreu. Dentro de bolhas ou nos polos sustentam-se verdades infraturáveis, e o que se evita são, justamente, os atritos. Para tanto, é claro, precisamos nos perguntar: como se dá, hoje, nossa partilha do sensível? Como usar a língua não como descrição do mundo, mas como construção do mundo? Poder ouvir dos atritos as constituições que traçam novos possíveis, que nos colocam diante de impossíveis, poder questioná-los, montá-los, desmontá-los, são exercícios necessários para questionar minimamente as regras do jogo. Porque é de acordo com elas que se toma posição.
O jogo, porém, não se esgota nos polos nem nas identidades, mas em certa radicalização capaz de produzir atritos, de descentrar, e que escape das predições sem restos, da indiferença. Que entre centro e ausência, se aprofunde a invenção das redes, das articulações, para que se evite o pior. Didi-Huberman, a propósito do pensamento radical, diz o seguinte:
é um pensamento obstinado em sua progressão, sem dúvida, mas também pleno do tato tornado necessário pela complexidade do terreno, pela proliferação das lianas e das raízes que nos cortam constantemente o caminho. Logo, um pensamento radical seria o contrário de um pensamento dogmático. Seria um pensamento exploratório, alerta e, portanto, cheio de nuances – ou de imagens dialéticas com as quais é fatalmente tramada qualquer travessia do tempo. Visto que as raízes não apenas fixam a árvore na terra, mas também lhe asseguram alguma coisa como um movimento migratório que a faz ‘tocar’ outras árvores, segundo um processo chamado anastomose, o pensamento radical seria um pensamento capaz de migrar para fora dele mesmo, um pensamento capaz de questionar seus próprios fundamentos.[10]
Poderíamos colocar aí onde se lê “pensamento”, no texto de Didi-Huberman, nossa prática da língua: radicalmente contingente, aberta, provocativa que saiba que não é o mundo que precisa da psicanálise, mas a psicanálise que precisa de um mundo vivo em sua multiplicidade. Disposta, então, a provocar os atritos e atenta aos mínimos gestos que não hesitam em impor a coragem de alguma verdade como a daquele pai nas areias de Copacabana.
[1] BRUNO, F. Arquiteturas algorítmicas e negacionismo: a pandemia, o comum e o futuro. Disponível em: <https://www.youtube.com/watch?v=3p7hoIi8f94&t=3273s>.
[2] MBEMBE, A. Crítica da razão negra. São Paulo: n-1 edições, 2018. p. 27.
[3] MBEMBE, A. Necropolítica. São Paulo: n-1 edições, 2018.
[4] MILLER, J.-A. Em direção à adolescência. Opção Lacaniana, São Paulo, Eolia, n. 72, 2016.
[5] LACAN, J. Televisão. In: ___. Outros escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2003. p. 508-543.
[6] LATOUR, B.; CHAKRABARTY, D. Conflicts of planetary proportions – a conversation. Forthcoming in the special issue “Historical Thinking and the Human”. Journal of the Philosophy of History, 2020. Disponível em: <http://www.bruno-latour.fr/sites/default/files/170-PLANETARY-PROPORTIONS.pdf>.
[7] NUNES, R. Todo lado tem dois lados. Serrote, São Paulo, Instituto Moreira Salles, mar. 2020. Disponível em: <https://www.revistaserrote.com.br/2020/06/todo-lado-tem-dois-lados-por-rodrigo-nunes/>.
[8] NUNES, R. Todo lado tem dois lados. Op. cit.
[9] MILLER, J.-A. Intuições milanesas. Opção Lacaniana online, São Paulo, n. 5, jul. 2011. Disponível em: <http://www.opcaolacaniana.com.br/pdf/numero_5/Intui%C3%A7%C3%B5es_milanesas.pdf>.
[10] DIDI-HUBERMAN, G. Radical, radicular. Pandemia Crítica. São Paulo: n-1 edições, 2020. Disponível em: <https://www.n-1edicoes.org/textos/131>.
*Texto publicado na Correio. Revista da Escola Brasileira de Psicanálise. n.84, outubro de 2020.