Vozes da floresta-Vozes da vida*

Na pandemia, ao menos em seu princípio, experimentou-se a sensação de que todo mundo era índio: ameaçados pela morte, isolados ou tendo que enfrentar os riscos de contaminação, tendo que reconstruir alguma coisa de um mundo perdido que nem sabia-se bem o que era. Sabemos que o curso disso mudou. Se “no Brasil todo mundo é índio, exceto quem não é”, como diz a célebre construção de Eduardo Viveiros de Castro, pudemos ver a configuração desta afirmação na desigualdade que se aprofundou no Brasil. Sabe-se bem quem é índio e quem não é. 

No entanto, não deixamos de ver que aí, nesses povos outros, e são muitos, há muito tempo se vive fins de mundos. São eles que reinscrevem, em ato, o horizonte, a presença viva de outros mundos possíveis. Sociedades contra o Estado, sociedades contra a História que carregam consigo há séculos as marcas indeléveis que ambos, História e Estado, deixaram e continuam deixando sobre seus territórios, sobre seus modos de vida, sobre seus corpos. E com elas, com as marcas de genocídios e pandemias, souberam e sabem relançar a vida. 

A ideia de adiar o fim do mundo de Ailton Krenak marca a um só tempo que os mundos acabam e que adiá-los é um fazer cotidiano. Sua ideia de cultura é dinâmica, ela se produz a todo tempo e coincide com sua ideia de democracia. Em ambas, o que está no centro é a noção de experiência: “Democracia é uma coisa que uma sociedade corajosa, determinada, consegue instituir como experiência cotidiana. Ela é construída todo dia. É uma ideia liberal demais achar que a democracia é uma coisa estabelecida. Ela é um sonho e existe só a cada dia”. Pouca coisa pronta e muita coisa por fazer. Nos termos da cultura, sua produção múltipla e constante confronta as políticas que vão desde o envenenamento e desertificação da terra que instala a monocultura à massiva homogeneização dos modos de vida, cujas proporções etnocidas são verificadas diariamente. Um plano de salvação das almas que obedece estritamente ao projeto capitalista do “mercado comum” que se reitera nas tentativas de fazer com que os múltiplos mundos desapareçam em nome de um mundo comum, como argumenta EVC, que se funda em um paradoxo hipócrita de acesso a esse comum, onde o com é esmagado pelo Um. Enquanto uma autêntica ideia de comum seria o sem-Um, o múltiplo dos povos, das vidas, das vozes. 
Pensando ontem sobre o nome da mesa, Vozes da Floresta, vozes da vida, pensava também que é importante fazer ressoar o equívoco cheio de potência que Ailton traz quando fala da terra/Terra, das suas relações vitais e políticas. Essa me parece uma forma perspicaz de fazer um desvio no que o Ocidente propõe como economia e política da vida. Este equívoco nos diz para não dissolver tudo em um mundo comum ao mesmo tempo em que não cessa de dizer que estamos embaixo do mesmo céu. Em última instância, seria não tomar os diferentes mundos e modos de vida como subdesenvolvidos e, portanto, a desenvolver, como já criticava Lacan, mostrando que esta é a aspiração de todo pensamento colonial. E também entender, com isso, que a colonização não terminou, ao contrário, se infiltrou no cotidiano – como diz Krenak que responde a isso com os encontros, os verdadeiros encontros, esses em que as diferenças, a alteridade, as opacidades podem ocupar um lugar comum. E concebe esta ideia a partir do “poder da palavra”, na insistência de contar sempre mais uma história, as contra-histórias que fazem caber no mundo o descabido da vida mesmo quando o ar é irrespirável. Por aí que leio o que diz Ailton: “só conseguimos nomear o que experimentamos” porque nomear implica uma poética das relações, das travessias, dos encontros. Lacan dizia que há coisas que são sem chances para um ocidentado, quem sabe poderíamos tomar as idéias de Ailton Krenak neste sentido, como um convite à experiência de desocidentar.

*Comentário escrito para a mesa com Ailton Krenak que aconteceu na Jornada da EBP-Seção Rio de Janeiro, Os nomes da vida, em novembro de 2021.

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