Uma mulher

Quando li o livro da Angélica Freitas, Um útero é do tamanho de um punho, faltavam poucos dias para um evento psicanalítico cujo tema era “Um mundo mais feminino” e esta foi uma feliz coincidência que me fez pensar bastante nas mulheres e nos seus úteros do tamanho de um punho (e não é perturbador pensar que “uma pessoa já coube num útero/ não cabe num punho”?).

É conhecida a frase de Lacan que anunciava que A mulher não existe. Frase esta que causou e causa ainda muito furor nas discussões sobre a (im)possibilidade de um feminismo lacaniano. Mas a coisa é um tanto mais complexa e interessante. A mulher não existe de Lacan vem dizer que as mulheres não fazem conjunto, que não existe exceção, como existe a exceção que funda o pai da horda primitiva para Freud. Isto quer dizer que é impossível generalizar as mulheres (como se generalizam os filhos do pai da horda) e que elas devem ser tomadas uma por uma. Ou, por outra, que não existe significante que defina A mulher porque as mulheres não se submetem totalmente a ordem simbólica. Alguma coisa escapa (“as psicólogas do café freud/ se olham e sorriem”).

O livro da Angélica se situa, para mim, precisamente nesse lugar, na impossibilidade de dizer toda A mulher. Não por acaso, encontramos nos títulos de uma série de poemas “uma mulher”: “uma mulher boa”, “uma mulher feia”, “uma mulher sóbria”, “uma mulher gorda”, “uma mulher insanamente bonita”, “uma mulher limpa”, “uma mulher que gostava muito de escovar os dentes”, “uma mulher que não gostava de dizer”, “uma mulher que não perdia”, etc.

E essas mulheres são construções, como alerta Angélica: “a mulher é uma construção/ deve ser”. O único dever ser (o único possível) da mulher, para alegria ou desolação, é a sua construção, o que torna tudo mais árduo e histérico, mas ao mesmo tempo, por não ser pré-fabricada, ali se apresenta o lugar da invenção. O que sabemos é que “a mulher é uma construção/ com buracos demais/ vaza” (Lacan diria, são mais amigas do real), e por isso elas podem enfrentar o ralo, aquele buraco escuro (Freud diria, dark continent) em que se depositam os excessos, os dejetos, as loucuras a partir dos quais ela tem que se inventar. Mas não será nada muito profundo (ainda bem!) já que as mulheres sabem dos semblantes e que tudo é bem ralo. Por isso elas podem ser “mulher de vermelho” e “mulher de valores” e “mulher de posses” e “mulher depois” e “mulher depressa” e “mulher de um homem só” e “mulher de respeito” e “mulher de malandro” e “mulher de regime” e, e, e. Há sempre aí um excesso, algo que excede o dito. O que fez com que Lacan dissesse que todas as mulheres são loucas, mas loucas não de todo (nãotodas). Na impossibilidade de formar o Todo, um universal feminino, haverá sempre um fora, que não circunscreve regras, que não obedece à biologia, à linguagem, à cultura. Neste sentido, as mulheres sempre serão mal-ditas.

12 opiniões sobre “Uma mulher

  1. Tenho com esse livro da Angélica uma relação que vai além do gosto (o que já seria coisa demais), é algo de gratidão, de sintonia que ultrapassa a empatia estética e que pairava em minha leitura sem que eu pudesse entender muito bem. Seu texto fez um clarão aqui, Flávia. O que me faz sentir orgulho da poesia da Angélica é precisamente essa identificação no incômodo de ser classificada: “todas falam isso”, “mulheres são assim”, “vocês gostam disso”. Quanta leviandade, quantos rótulos equivocados. Coisa mais linda falarem sobre essa generalidade que admitimos e que nos une desfazendo estragos.
    Grande beijo!

    • Fernanda, que bonito seu comentário. Tenho um relação íntima e estranha com o livro da Angélica. Como se a cada leitura fosse uma descoberta de um outro universo feminino. Bjs e obrigada pela leitura.

  2. Flavia, eu concordo que grande parte da radicalidade do pensamento do Lacan reside nessa aposta da singularidade do sujeito. Desse modo, essa relação mais essencial das mulheres com o buraco da existência parece abrir algumas portas. Uma mulher é sempre não-toda. Uma mulher não faz conjunto. Tudo bem. Mas eu pergunto o seguinte: e se a tarefa atual não for justamente pensar isto “que não faz conjunto”? Vou tentar ser mais específico. Bem, não à toa, ao meu ver, o Cantor ficou louco ao tentar (e não conseguir) comprovar Deus nessa instância transcendente daquilo que não pode ser tomado enquanto um objeto finito (um conjunto, enfim). Mesmo assim, o seu esforço mostrou que o infinito pode ser alcançado – há infinitos maiores que outros, em outras palavras, há maneiras de se apropriar daquilo que não pode ser tomado enquanto objeto. Por quê eu tô dizendo isso? Porque talvez seja a hora de não mais afirmar apenas a singularidade de toda a mulher, mas tirar consequências radicais dessa postura. Um pouco na esteira daquele texto do Miller “mulheres e semblantes”: quando ele afirma as características de uma “verdadeira mulher” (não mais ter o falo, mas ser o falo) cujo principal exemplo é Medeia. “Pobres homens que não reconhecem uma Medeia quando a encontram”. Qualquer homem (medroso por excelência) treme nas bases frente a uma mulher que não tem nada mais a perder. Não sei, mas desconfio que as pistas de algo próximo a um “feminismo lacaniano” (talvez com outro nome, não sei) possam estar por aí.

    beijo grande

  3. Flávia,
    Um trecho do seu texto me intrigou particularmente. É esse aqui: “A mulher não existe de Lacan vem dizer que as mulheres não fazem conjunto, que não existe exceção, como existe a exceção que funda o pai da horda primitiva para Freud. Isto quer dizer que é impossível generalizar as mulheres (como se generalizam os filhos do pai da horda) e que elas devem ser tomadas uma por uma. Ou, por outra, que não existe significante que defina A mulher porque as mulheres não se submetem totalmente a ordem simbólica. Alguma coisa escapa (“as psicólogas do café freud/ se olham e sorriem”).”
    Bom, não sei se você concorda mas acho que nenhuma categoria [homem, mulher, criança, ocidental] como tal se submete totalmente a uma ordem simbólica – que alguma coisa em todas essas categorias sempre escapa. Como a gente vem de formações bem diferentes, eu entendo que uma conversa nossa deve ter um certo ruído sempre, mas mesmo assim, pelo menos para mim, acho que vale a pena.

    • Oi, Paulo. Sim, eu concordo com você: todo sujeito tem algo que escapa. No entanto, essa distinção lacaniana veio na tentativa de firmar uma saída para o Complexo de Édipo freudiano pensando a mulher já não mais pela castração (por isso a ênfase nas mulheres para as quais Freud não conseguiu formular respostas a sua célebre pergunta). Essa leitura do feminino está para além do corpo biológico e já se encontra em um Lacan que pensa as fórmulas da sexuação com um lado macho e um lado fêmea que podem ser ocupados indistintamente por homens ou mulheres. Vou ver se logo escrevo sobre isso e retomamos a conversa. Abraço

  4. Tive a mesma sensação de gratidão referida num comentário acima (de Fernanda, acho), quando li a poesia de Angélica Freitas pela primeira vez. Uma jovem poeta com tanta força literária, feminina. Ela escreve de um jeito que transforma o (a) leitor (a) e é por isso que não dá pra ser indiferente à leitura de ‘um útero é do tamanho de um punho’. De pronto não dá para entender o porquê, mas depois vai chegando a sensação de ‘ufa, ainda bem que alguém escreveu isso. E é uma poeta’. Felicidade é encontrar-se diante da boa literatura, aquela que se impõe sem afetação e lhe diz algo, lhe inquieta, lhe provoca e, principalmente, lhe acolhe.

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