Pequena nota sobre o método

Li há pouco tempo um fragmento, um começo, de texto da Alessandra Martins Parente que ela tinha escrito para um congresso quando do nascimento do seu filho. Nesse fragmento ela falava da falta de um pretenso rigor filosófico e de um pensamento vivo, da nova posição que ocupou para pensar e escrever um texto que não era de horas de biblioteca, mas no meio do caos e cansaço depois de um dia dedicado aos cuidados de uma criança. Um lugar sem fixidez do saber, lugar da mulher, da mulher-mãe, sobretudo, de um saber claudicante e cheio de possíveis, precário e ávido, que comporta um ponto irredutível do feminino. De fato, não há como pensar e escrever do mesmo modo depois de um filho. O tempo e o espaço não têm mais a mesma configuração, alguma coisa se desloca.

Minha nota vai nesse sentido. Aqui já não cabe mais um tom de desculpa por um não ter feito mais ou melhor, trata-se de assinalar um método. Neste momento em que cuido de um bebê, momento em que leio, cozinho, brinco, dou colo, em que o ajudo a ler o mundo, em que imprimo letras para que ele possa ler, escrever, e tramar suas letras, seus textos no mundo, o que outrora seria o inacabado ou imperfeito, ganha, para mim, o status radical de começo, de começo da vida, de começo do texto, começo de leitura. Então é a partir dessa experiência vital, desse lugar inédito, absolutamente atravessada pelo corpo, pela bagunça, choros, sorrisos, pelos ruídos de pura língua, pelos começos de palavras, pelo cansaço e pela alegria, por esse que veio de mim e é outro, desse ponto inquietante e êxtimo, dessa experiência que se escreve no meu corpo: só assim e com tudo isso poderei escrever algum texto.

(Essa nota sobre o método antecedeu o texto Corpo do texto e texto do corpo que apresentei na última ABRALIC no Simpósio Performar a Literatura)

As imagens, os corpos e o resto

Diante do espelho uma criança observa-se com júbilo e é apresentada a um corpo inteiro, a uma unidade corporal que a livra da angústia de um corpo fragmentado. Um corpo ganha forma aí, pela imagem refletida no espelho. A duplicação do corpo, a imagem com a qual a criança gesticula, brinca, anima, revela, explica Lacan, uma “estrutura ontológica do mundo humano”[1]. Essa afirmação ontológica de Lacan não diz outra coisa senão que o ser é uma imagem. Ou seja, já não se trata de uma consistência material que sustenta o ser, ou de alguma transcendentalidade de consciência, o ser forma-se na imagem e é imagem. Somos, portanto, a princípio, imagem e é a partir dela que formaremos nossos laços, é a partir dela que assumiremos um modo de vida, enfim, é a partir dela que iniciamos uma ficção sobre quem somos.

É através da imagem que nos identificamos, diz Lacan: Basta compreender o estádio do espelho como uma identificação tal qual a análise atribui a esse termo, ou seja, a transformação produzida no sujeito quando ele assume uma imagem – cuja predestinação para esse efeito de fase é suficientemente indicada pelo uso, na teoria, do antigo termo imago[2].

A identificação de que Lacan fala pode ser lida como a apropriação de uma imagem refletida no espelho como se – aqui se ressalta o caráter ficcional – fosse a sua imagem. A instância imaginária desse eu é o que estabelece a linha de ficção que começa a nos dar sentido. É essa capacidade de identificação com a imagem que também nos habilita a projetar imagens (que nunca são próprias, mas sim apropriadas, roubadas, emprestadas, etc.). Isto é, na medida em que nos refletimos no espelho, que nos apropriamos de uma imagem, que formamos um eu, passamos também a veicular imagens. Este é um modo, lembra Ram Mandil, “de conferir consistência ao corpo (…). Trata-se do corpo como unificação de experiências fragmentadas, heterogêneas, cuja consistência seria assegurada pela sua forma”[3]. Até aqui falamos do corpo unificado, de identidades e identificações – de um corpo imaginário. Das imagens como mediação e da imagem do corpo como mediação com o real do corpo fragmentado.

Quando, porém, trabalhamos com a noção de falasser já não tratamos tanto dessa unidade imaginária consistente. Estamos muito mais perto do campo da fabricação com peças soltas, avulsas e, sobretudo, com as imagens de todo o tipo que nos rodeiam. Marcus André Vieira o disse da seguinte forma, partindo da colagem que Vik Muniz utiliza para montar seus quadros: “o resultado nos dá o sentimento tão contemporâneo de que a imagem que temos de nós mesmos só se sustenta enquanto a miramos de longe. Não me refiro ao conhecido tema segundo o qual de perto podemos enxergar os vícios e as imperfeições ocultas, mas sim perceber o quanto nossa auto-imagem, incluindo nisso o corpo, é resultado de uma fabricação”[4].

Lidar com a vertigem cotidiana das imagens que pipocam nas telas sem mesmo pedir autorização nos lança em um caos impossível de apreender na linearidade do tempo, na univocidade de uma identidade, de uma ideia total do corpo. Essa vertigem, portanto, exige um trabalho com o múltiplo, com os corpos, no plural, com a fugacidade das identificações, com a transversalidade do tempo e do espaço, tão própria das redes, com o que escapa. Sabemos que o encontro entre corpo e imagem é sempre falho. São instâncias que coexistem, mas não coincidem. Essas não coincidências, as fissuras que se abrem nesse jogo entre corpo e imagem fazem vacilar os ideais. Não raro, quando a identificação entre corpo e imagem fratura torna-se um motivo para um sujeito procurar uma análise. Mas quando já não estamos no campo da imagem unificada, orientadora e consistente, e sim numa colagem de imagens heterogêneas, que função tem as imagens?

Guy Debord, n’A sociedade do espetáculo, dizia que toda experiência foi convertida pela mediação das imagens e que não poderíamos viver diretamente, mas apenas por simulacros espetaculares que anestesiam a experiência. “O espetáculo não é um conjunto de imagens, mas uma relação social entre pessoas, mediatizada por imagens”.[5] Uma definição de facebook avant la lettre. O espetáculo e sua mediação pelas imagens tenta unificar os corpos por meio de um esforço identificatório que não corresponde apenas imaginário. Ele vai além: tratam-se de imagens que atuam no real do corpo. Se com o Estádio do Espelho tínhamos a unificação de experiência corporais em uma imagem, agora temos imagens que tomam corpo para serem experienciadas. Com a fragilidade dos laços sociais, as imagens funcionam como uma espécie de cola precária que sustentam identificações relâmpagos e que frequentemente são acompanhadas de tags como, por exemplo, “tal coisa ou fulano me representa”. Tenta-se conseguir uma identificação plena a cada interesse da ocasião, que elimine o resto, o que na imagem não cabe: das modas, das cirurgias plásticas à escolha de imagens de guerra, o que se coloca em cena é uma crença na identificação total que aplacaria as angústias através da sua coincidência, sem furo. Uma estratégia perigosa e totalitária já não mais centrada em uma figura. Um totalitarismo acéfalo, de sociedades anônimas.

Apesar de todos os esforços que, sabemos, não são poucos, existe ou melhor insiste um resto ineliminável. É com ele que a arte inventa e é com ele que a psicanálise trabalha fazendo existir o furo da imagem e fazendo aparecer o furo na imagem. Nenhuma ilusão totalizante ou totalitária: não se trata de reatar com a experiência perdida, ou de restituir uma velha ordem e nem tampouco lamentar sua perda. Não existe um mundo que tenha que ser salvo, ao contrário, temos mundos que são constantemente inventados e a nossa aposta é nos restos, nas peças soltas, nos vestígios das imagens.

Flávia Cera (flavia.cera@gmail.com)                                                                                                         Texto apresentado no XII Colóquio da EBP-PR: Corpos Lacanianos (outubro de 2015)

[1] LACAN, Jacques. “O estádio do espelho como formador da função do eu”. In: Escritos. Tradução de Vera Ribeiro. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1998.

[2] Idem.

[3] Mandil, Ram (2015). Parlêtre e consistência corporal. Disponível em: https://www.congressoamp2016.com/pagina.php?area=8&pagina=48

[4] Vieira, Marcus André (2014). Apresentação do X Congresso Mundial da AMP. Disponível em: https://www.congressoamp2016.com/pagina.php?area=1&pagina=4

[5] Debord, Guy. A sociedade do espetáculo. Tradução de Estela dos Santos Abreu. Rio de Janeiro: Contraponto, 1997.

Um turbulento debate de corpos

Esta palavra, tantas vezes
aplicada sem pensar, preciso dela aqui
e já não me serve.
Joan Brossa.

Minha questão nesse texto é fazer uma primeira tentativa de esclarecer alguns pontos do que podemos entender como adolescência em psicanálise já que não figura dentre seus conceitos. Trata-se de uma pesquisa em curso. Uma primeira constatação me leva a pensar que só é possível definir um adolescente na clínica. E isso se dá através da singularidade do mal-estar que se apresenta para um sujeito, de seus sintomas, encontros, mudanças, impasses, história. O que frequentemente se constata como adolescência – a agitação e mudança nos corpos, transgressões, idade, etapas de desenvolvimento, etc. – corresponde a uma concepção sociológica e comportamental, tanto é que, até mesmo na infância, haveria uma adolescência: o terrible two ou o threenager. Essa definição está muito mais ligada ao que se entende como crise da adolescência ou o que se convencionou chamar com o neologismo aborrescência que coloca em um limbo de resposta pronta para que não se precise ouvir o que um jovem tem a dizer. A essas manifestações chamaremos de sintomas e, com Stevens[1], diremos que a adolescência é um sintoma da puberdade. Sintomas que serão orientadores na clínica e na cultura porque eles respondem sobre o mal-estar desta ao mesmo tempo que dizem algo singular do desejo. Os jovens, mais do que em crise, são uma bússola para as crises, suas invenções inéditas estão sempre na vanguarda das épocas. Com eles temos muito a aprender.

Na clínica se temos na adolescência uma crise, é porque tomamos o seu sentido etimológico de separação. Dentre as muitas que teremos na vida, a adolescência aponta para uma profunda experiência de separação: do corpo e dos significantes da infância, dos pais quando precisa se dirigir ao Outro social sem a garantia destes. “Vais encontrar o mundo, disse meu pai, à porta do Ateneu. Coragem para a luta”, nos conta Sérgio, personagem de Raul Pompeia que narra tão bem o momento de saída da infância. Essa separação se produz, sobretudo, no encontro com Outro corpo. E um deles é o próprio corpo no atravessamento de uma metamorfose – que é, de acordo com Freud, a puberdade. Uma mudança no corpo que produz efeitos no modo de gozo, mudança que causa estranhamento. Clarice Lispector o diz lindamente em seu conto O primeiro beijo: “Sofreu um tremor que não se via por fora e que se iniciou bem dentro dele e tomou-lhe o corpo todo estourando pelo rosto em brasa viva. Deu um passo para trás ou para frente, nem sabia mais o que fazia. Perturbado, atônito, percebeu que uma parte de seu corpo, sempre antes relaxada, estava agora com uma tensão agressiva, e isso nunca lhe tinha acontecido. Estava de pé, docemente agressivo, sozinho no meio dos outros, de coração batendo fundo, espaçado, sentindo o mundo se transformar. A vida era inteiramente nova, era outra, descoberta com sobressalto. Perplexo, num equilíbrio frágil”.

Sabemos que, para Lacan, não somos um corpo, mas temos um corpo[2]. É preciso então de uma apropriação para poder habitá-lo. O que não é simples, porque há algo do corpo que sempre resta como estranho, como fora da imagem que o unifica. Não se trata então de domesticar um corpo, mas de habitá-lo nesse lugar equívoco entre a língua e a imagem. A puberdade aprofunda essa relação de estranhamento colocando em crise o corpo, sua imagem, as identificações e os recursos simbólicos que se tinha para dar conta das hipóteses sobre a sexualidade. Não é por acaso que os adolescentes criam uma língua própria, uma língua estrangeira dentro da própria língua. Justamente porque falar, tomar a palavra sem a tutela dos pais, implica um risco, por exemplo, o de desejar. O que mostra que a irrupção da puberdade é muito mais da ordem do discurso que do fenômeno.

A adolescência é, então, uma construção, como lembra Miller[3]. É uma construção muito singular porque se trata, podemos dizer com Lacan[4], de uma nova montagem pulsional que passa por outro corpo. Ela deixa de ser predominantemente auto-erótica, como explica Freud nos Três ensaios, e encontra o objeto sexual[5]. Mas Freud também diz que esse encontro é da ordem do reencontro. Seguindo a leitura dos texto de Daniel Roy[6], podemos dizer que esse reencontro é com o furo que marca a impossibilidade de uma plenitude mítica que foi encoberto pelo amor dos pais na infância, em suma, o encontro com o real da não-relação. Por isso Lacan dirá que “o véu não mostra nada eis o princípio da iniciação”. Ou seja, a sexualidade faz buraco no real em torno do qual o ser falante terá que montar suas hipóteses, sustentar seu desejo, construir seu corpo uma vez que as construções da infância não contemplam a nova posição requerida.

Hoje, contudo, os encontros prescindem dos corpos. O mundo acontece nas redes sociais. Essa virtualização dos corpos, por exemplo, implicaria no curto-circuito dessa passagem, dessa volta a mais que o adolescente pode fazer no corpo do Outro? É bem possível, e as consequências disso ainda estamos recolhendo. Mas isso não quer dizer que as coisas tenham melhorado ou piorado, nem mesmo simplificado. Sozinho no meio dos outros, um adolescente ainda porta um corpo que não tem lugar. Essa metamorfose, esse corpo estranho que solicita uma nova relação com a imagem, o gozo estrangeiro que se funda, inicia o turbulento debate dos corpos. À deriva em um mundo de desidealização e ampla multiplicação de objetos, a relação com o Outro, e consequentemente seu modo de estar no mundo, se fragiliza mais ainda. O que o encontro com um analista pode estabelecer é uma parceira que não seja nem pela via de um apelo ao pai dos ideais nem pela via da tirania do imperativo de gozo. É acolhendo o sintoma, nossa política e nossa orientação clínica, podendo ouvir as experiências desses seres falantes, e assim ir construindo lugares – sempre transitórios –, para que não haja apenas a vertigem do que não cessa de não se escrever, mas o contorno de linhas tortas, tênues e permeáveis por onde poderá caminhar o desejo na complexa tessitura da vida.

[1] Stevens, A. Adolescência, sintoma e puberdade, 1998. (publicado originalmente em Les Feuillets Du Courtil, n.15).

[2] LACAN, J. “Joyce, o Sinthoma” (1975). In: Outros Escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2003.

[3] Miller, J-A. Em direção à adolescência (2015). Disponível em http://minascomlacan.com.br/blog/em-direcao-a-adolescencia/

[4] Lacan, J. O Seminário, Livro 11, Os quatro conceitos fundamentais da psicanálise (1963-1964). Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2008.

[5] Freud, S. “Três ensaios sobre a sexualidade” (1905). In: Obras Completas. Rio de Janeiro: Imago, v.VII, 1996. p. 163-195.

[6] Roy, Daniel. Metamorfose (2016). Disponível em: http://minascomlacan.com.br/blog/qqpega-03-metamorfose-daniel-roy/

[texto apresentado no Encontro do CIEN e da NRCEREDA: Saídas da infância: escolhas do sujeito]

Um esforço de poesia

Ontem no meu consultório comecei um grupo de pesquisa e leitura sobre Lituraterra, psicanálise e literatura. Antes, porém, pensei muito sobre o que me levaria aos sábados de manhã a pensar sobre psicanálise e literatura, sobre a escrita, a leitura, sobre Lituraterra, quando tudo parece tão medonhamente assombroso. Olho para o meu filho e me preocupo com o porvir. Que fazer?
Lituraterra, no entanto, me comove. Me co-move {foi uma reunião tão linda, com pessoas tão legais, com intervenções tão bonitas}. Então, pensei, se, como Lacan diz, decisivo é o litoral, é por aí mesmo que terei que caminhar. Nesse lugar heterogêneo esvaziado de uma matéria própria, co-habitado por mais de um mundo, mundos impróprios.
Certa feita ouvi um psicanalista batuta dizer que todo ideal tem um fundo homicida. Nesses últimos dias essa frase não me sai da cabeça. Nem sei se se tratam de ideais o que rola por aí, ou se são apenas adesões enlouquecidas movidas pela segregação – a marca de nosso tempo. Mas, por essa frase me tocar tanto nesse momento em que se quer tudo homogêneo e uniforme, que se tenta matar toda e qualquer diferença, trabalhar psicanálise e literatura nunca me pareceu tão apropriado: ambas são experiência que nos afastam dos ideais consistentes, que colocam o olhar em perspectiva, e que não têm, absolutamente, nem uma nem outra, qualquer aspecto salvacionista. O litoral não é um meio do caminho, um meio-termo, não é uma neutralidade política, ou uma justa medida, ou uma inação. Desde o litoral inventamos lugares e posições permanentemente. Inventamos outros modos de viver a vida. O que agora se faz tão urgente. Diante de um futuro que se desenha entristecido: a poesia e a psicanálise. Para não sucumbir aos abismos que aparecerem, para não sucumbir aos salvadores. Para re-existir.

Monocultura

Este texto foi apresentado na IX Jornada da EBP-SC: Psicanálise, crenças, leis, no dia 22/08/2014.

Monocultura

Miquel Bassols em recente entrevista concedida ao XX Congresso da EBP nomeia os três objetos, ou melhor, os três sujeitos tomados como objeto sobre os quais a violência se assevera. São eles: a mulher, ou a feminilidade; a criança, ou o infantil; e o louco, ou a loucura. Gostaria de acrescentar a esta tríade, um quarto objeto, este mesmo levantado por Bassols nas entrelinhas da entrevista quando menciona Lévi-Strauss[i], um quarto sujeito tomado como objeto: o índio – que forma, com os outros três, o quarteto das vanguardas do início do século XX. Uma preocupação me motiva neste texto: “a ofensiva final”[ii] contra as populações indígenas no Brasil. Aqui a tomarei como paradigma da violência engendrada pelo discurso capitalista e seus congêneres: o Estado e a religião. Os três lugares desta Jornada amarram o nó com o qual podemos ler este tema: a psicanálise, por seu laço estreito com a antropologia e, mais ainda, por apostar que sua contribuição é a capacidade de sustentar uma “organização lógica entre o Uno e o Múltiplo (…) que não tenha a integração a qualquer preço”[iii], tema central do texto; a crença, pensada aqui como religião; e a lei, como o espírito capitalista do progresso, a ortopedia desenvolvimentista.

Parto então da definição de racismo de Jacques Lacan, a saber, não suportar o modo de gozo do Outro: “Deixar a esse Outro seu modo de gozo, eis o que só se poderia fazer não impondo o nosso, não o considerando como um subdesenvolvido. […] como esperar que se prossiga o humanitarismo sentimentaloide de encomenda com o qual se vestem nossas atrocidades?”[iv]

Acrescento ao conceito de racismo de Lacan, a problemática levantada por Levi-Strauss em seu texto Raça e História, citado por Bassols, quando diz sobre um possível inventário das culturas humanas: “devemos conscientizar-nos que as culturas humanas não diferem entre si do mesmo modo, nem no mesmo plano”[v]. Não se trata, portanto, de um relativismo, ou seja, de um ponto de vista sobre um mundo comum, mas de um perspectivismo, i.e., de mundos totalmente diversos de onde partem as perspectivas: “todos os seres veem (“representam”) o mundo da mesma maneira — o que muda é o mundo que eles veem”[vi]. E não é essa a posição do analista, a de não responder de seu fantasma, seu mundo, mas poder escutar o mundo que o analisante vê? “Todas as coisas do mundo veem colocar-se em cena segundo as leis do significante, leis que de modo algum podemos tomar de imediato como homogêneas às do mundo”[vii], dizia Lacan em uma crítica à noção de homogeneidade do Cosmos. E aqui vale notar uma diferença fundamental com a religião: esta trata o mundo de um ponto de vista onisciente, o de Deus, ao qual nunca se tem acesso total e que é passível de interpretações sobre um mundo único, o Dele.

O caso dos povos indígenas me parece emblemático para pensar o racismo: a imposição de um modo de gozo a quem se julga subdesenvolvido justamente por não se considerar as perspectivas de mundos. Este gozo é fundamentado na mais-valia, no mais-de-gozar que está intimamente atrelado ao discurso do desenvolvimento, que é também, de acordo com Lacan, o discurso do capitalista[viii]. Partamos, então, de uma prerrogativa já senso comum: a “improdutividade” dos indígenas que alimenta toda querela da demarcação de terras.

Se desde o “descobrimento” se dava a América por vazia, notamos ainda hoje que a perspectiva não se altera: “Terra sem homens para homens sem terra”, bradava, justamente, o Plano de Integração Nacional do Médici. Mais recentemente, o Ministro para Assuntos Estratégicos, Mangabeira Unger, disse que a “Amazônia é uma coleção de árvores” e mais: “temos um compromisso sagrado com os índios, que são pessoas, e todas as pessoas são espíritos que desejam transcender” e o destino do homem é “ser grande, divino”. Falas do tipo: “as áreas produtivas devem ser de segurança nacional”, ou ainda a criação de fundos para amparar a produtividade em terras demarcadas, revela uma atuação perversa de incluir no campo econômico quem está fora dele. O antropólogo Viveiros de Castro vem insistindo neste ponto, na tentativa de converter índio em pobre para assim poder captura-lo nas malhas do discurso capitalista. Um perfeito exemplo de integração que gera, necessariamente, segregação e violência. Ganha quem produz objetos e quem converte o mundo em objeto. Daí que a terra se converta em cesta básica; a pesca se converta na distribuição de peixes congelados, a subsistência, em programa social.

Um plano de homogeneização que, como vislumbrou Guy Debord, gera um Planeta Doente, o que vem se agravando com o uso intensivo de agrotóxicos, por exemplo, o envenenamento do subsolo que altera completamente a dinâmica da população dos organismos vivos e diminui a diversidade, e que mostra um plano cultural produtivista refletido na sua face mortal: a monocultura. E este não é um dado menor: lembremos que o termo cultura vem de agricultura. Monocultura que se expande, por outro lado, na massiva evangelização nas aldeias, um verdadeiro “mercado das almas selvagens”[ix], cujas proporções etnocidas são verificadas diariamente. O plano de salvação das almas obedece estritamente ao projeto capitalista: além de fazer crer em deus e na palavra de deus, quer-se, sobretudo, dar “dignidade” e condições de “humanidade”. Uma coisa leva a outra: com o desaparecimento das cosmologias e costumes, não resta outra senão entrar no “sistema”[x]. Portanto, o argumento consolidado das benesses da evangelização, reconhecidos, sobretudo, na máxima: melhor estar na Igreja do que ser um criminoso, cai por terra.

Daí que possamos denotar a atmosfera de fim do mundo, ou fim de mundos, que ronda a contemporaneidade. Podemos apreciá-lo nos discursos indígenas, Davi Yanomami fala da Queda do Céu e ele mesmo viu seu povo ser dizimado com a Perimetral Norte aberta na Ditadura. Mas podemos constatar também no cinema e nas séries americanas nos quais a figura dos zumbis aparece mostrando que toda civilização é barbárie, que a civilização, levada a cabo, nos seus aparatos científicos depuradores das diferenças, por exemplo, é ela mesma a barbárie. Que o “estado de natureza” ao qual é necessário civilizar, ou fazer chegar o Espírito, é o produto, o efeito, da civilização e não o seu começo. Tudo se parece com uma gigantesca ficção científica, mas faço jus à prerrogativa de Lacan, qual seja, a de que a ficção científica é a única ciência que deve ser levada a sério e seguida[xi]. Que faz a religião neste prenúncio de fim de mundo? Seria uma restauração do mundo? Mas de que mundo? Não estaríamos em uma “ordem sem discurso”, isto é, uma ordem regida por um falso discurso como é, segundo Lacan, o capitalista, que teria como consequência o racismo e a violência? E a religião seria o discurso que suplementa[xii] o falso discurso capitalista alimentando-o de sentido?

Quem formula primorosamente uma pista desta fragilidade do laço como consequência desta ordem sem discurso é Davi Kopenawa. E termino com ele: “Os brancos nunca pensam nessas coisas que os xamãs conhecem, é por isso que eles não têm medo. Seu pensamento está cheio de esquecimento. Eles continuam a fixá-lo sem descanso em suas mercadorias, como se fossem suas namoradas”[xiii].

[i] Bassols cita o relatório que Lévi-Strauss escreveu para a Unesco. Lévi-Strauss, C. Raça e História. Em: Antropologia Estrutural II. 4.ed. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1993.

[ii] O termo é de Eduardo Viveiros de Castro. Em 2013 foi “encontrado” o Relatório Figueiredo produzido em 1966 que relata o extermínio de aldeias inteiras, torturas e outras barbaridades cometidas contra os indígenas na Ditadura Militar. O Relatório era dado como perdido em um suposto incêndio em 1967. Dados atuais, entretanto, não deixam dúvidas de uma situação complicada: a reserva de Dourados, por exemplo, tem um índice de assassinato de 145 para cada 100 mil habitantes, entre 2003 e 2010. No Iraque o índice é de 93 pessoas para cada 100 mil. Os dados mais alarmantes são os do povo Guarani Caiová, no Mato Grosso do Sul: “Desde 2000, foram 555 suicídios, 98% deles por enforcamento, 70% cometidos por homens, a maioria deles na faixa dos 15 aos 29 anos. No Brasil, o índice de suicídios em 2007 foi de 4,7 por 100 mil habitantes. Entre os indígenas, no mesmo ano, foi de 65,68 por 100 mil. Em 2008, o índice de suicídios entre os Guaranis Caiovás chegou a 87,97 por 100 mil, segundo dados oficiais”. “com a segunda maior população indígena do país, Mato Grosso do Sul é o Estado líder em assassinato de índios. Ganha da soma de todos os outros juntos. Nos últimos oito anos, ocorreram 250 homicídios de indígenas no Estado, ante 202 no resto do Brasil. Quase todas as vítimas eram guaranis-caiovás”. “a fome ainda assombra os guaranis-caiovás. Em 2005, houve um surto de mortes de crianças por desnutrição. A mortalidade infantil é de 38 óbitos para cada 1.000 nascimentos, ante a média de 25 no resto do Brasil”.

[iii] Bassols, M. Entrevista para o XX Encontro Brasileiro do Campo Freudiano. Disponível em: http://www.encontrocampofreudiano.org.br/2014/05/entrevista-bassols.html

[iv] Lacan, J. Televisão. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1993, p. 88-89

[v] Lévi-Strauss, C. Idem, p. 330.

[vi] Castro, E.V. Os pronomes cosmológicos e o perspectivismo ameríndio. Mana. vol.2 no.2 Rio de Janeiro outubro de 1996.

[vii] Lacan, J. O Seminário. Livro 10: a angústia, p. 42-43.

[viii] “o mais-de-gozar, assim como a mais-valia, só é detectável num discurso desenvolvido que não se cogita de discutir que possamos definir como o discurso do capitalista” Lacan, J. O Seminário. Livro 18: de um discurso que não fosse semblante. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2009, p. 46-47.

[ix] Milanez, F. O mercado das almas selvagens. Revista Rolling Stones, dezembro de 2011.

[x] O depoimento de Davi Kopenawa neste sentido é revelador: “O missionário não é como garimpeiro. É outro político. Eles não invadiam a terra, mas a nossa cultura, a nossa tradição, o nosso conhecimento. Eles são outro pensamento para tirar o nosso conhecimento e depois colocar o conhecimento deles, a sabedoria deles, a religião deles. Isso é diferente. Eu, Davi, já fui crente. Junto com eles. Mas depois queria conhecer Jesus Cristo. E não deu certo.” Isto remonta à famosa anedota contada por Levi-Strauss: “Nas grandes Antilhas, alguns anos após a descoberta da América, enquanto os espanhóis enviavam comissões de investigação para pesquisar se os indígenas tinham ou não uma alma, estes últimos dedicavam-se a imergir brancos prisioneiros, a fim de verificar, após uma vigília prolongada, se seu cadáver estava ou não sujeito à putrefação”. Trata-se aí da diferença fundamental de perspectivas: aos europeus interessava saber se tinham alma, aos índios, se tinha corpo.

[xi] “Para mim a única ciência verdadeira, séria, a ser seguida, é a ficção científica”. Entrevista de Jacques Lacan a Emilio Granzotto em fevereiro de 1974. Disponível em:

http://pt.scribd.com/doc/218912490/Entrevista-1974-Magazine-Litteraire

[xii] Suplemento porque justamente o capitalismo é um falso discurso e funciona assim. “Isso se consome e se consome tão bem que isso se consuma”. O sentido não é um problema do capitalismo, ele não precisa gerar sentido para sobreviver, mas, no entanto, sem sentido, ele não sobrevive – daí o pior das suas alianças, por exemplo, com a ciência.

[xiii] Kopenawa, D. Descobrindo os brancos. Disponível em:

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Os nomes que voltam

Foi preciso perder Neymar (perda tristíssima, aliás) nesta Copa para que o trágico dela voltasse e ressignificasse a perda. Perder Neymar trouxe de volta o nome de Amarildo, jogador que em 62 substituiu Pelé, que também havia se machucado, e ajudou a seleção na conquista do Mundial. 52 anos depois o nome de Amarildo reaparece em um contexto semelhante e totalmente diverso: Amarildo é o nome da copa, o nome do Brasil. Sua ausência presente, seu retorno implacável. Curiosamente, segundo especialistas, não temos um Amarildo para substituir Neymar. E de outro lado, continuamos engrossando a lista de Amarildos nas cidades. Será preciso jogar com a sua falta porque nada os substituiu. O que nos resta é saber que seu nome, Amarildo, é a marca do cenário triste e verde-amarelo sobre o qual caminhamos. Ontem José Trajano no Linha de Passe não perdeu a oportunidade de perguntar “Cadê o Amarildo?” e em relação a Neymar, mas não menos a Amarildo, dizia que tínhamos que fazer o luto para depois seguir pensando em como a seleção poderia jogar. E ele tem razão. Quando não elaboramos a perda, ela retorna e não cessa de retornar. E, neste caso, com o reforço de uma violência racista e xenófoba (contra o jogador colombiano) que se acumula nos escombros disto que chamamos de civilização lembrando-nos que esta copa entre vários nomes, tem um nome, e esse nome é Amarildo. 

Presente

Ele diz: eu só sei como as coisas são. Não pergunte como poderiam ser, como seriam, como serão. Ele só sabe viver no presente. Se arrasta. Não sabe dizer do amanhã. Nem pensa. Nem imagina. Levanta-se todo o dia como se fosse o primeiro. Ele não tem memória. Cria sempre um universo ao redor de si. Para lhe dar conforto. Que se apaga. Quando fecha os olhos. Cria seus afetos. Simula conversas. Seleciona seus gostos. Ele é pura invenção. Dia desses conheceu uma pessoa. Velha conhecida. Queria que aquele momento durasse para sempre. Precisava congelar o tempo. Tentou nunca mais dormir. Ele não tinha futuro. E queria sentir saudades.

Uma mulher

Quando li o livro da Angélica Freitas, Um útero é do tamanho de um punho, faltavam poucos dias para um evento psicanalítico cujo tema era “Um mundo mais feminino” e esta foi uma feliz coincidência que me fez pensar bastante nas mulheres e nos seus úteros do tamanho de um punho (e não é perturbador pensar que “uma pessoa já coube num útero/ não cabe num punho”?).

É conhecida a frase de Lacan que anunciava que A mulher não existe. Frase esta que causou e causa ainda muito furor nas discussões sobre a (im)possibilidade de um feminismo lacaniano. Mas a coisa é um tanto mais complexa e interessante. A mulher não existe de Lacan vem dizer que as mulheres não fazem conjunto, que não existe exceção, como existe a exceção que funda o pai da horda primitiva para Freud. Isto quer dizer que é impossível generalizar as mulheres (como se generalizam os filhos do pai da horda) e que elas devem ser tomadas uma por uma. Ou, por outra, que não existe significante que defina A mulher porque as mulheres não se submetem totalmente a ordem simbólica. Alguma coisa escapa (“as psicólogas do café freud/ se olham e sorriem”).

O livro da Angélica se situa, para mim, precisamente nesse lugar, na impossibilidade de dizer toda A mulher. Não por acaso, encontramos nos títulos de uma série de poemas “uma mulher”: “uma mulher boa”, “uma mulher feia”, “uma mulher sóbria”, “uma mulher gorda”, “uma mulher insanamente bonita”, “uma mulher limpa”, “uma mulher que gostava muito de escovar os dentes”, “uma mulher que não gostava de dizer”, “uma mulher que não perdia”, etc.

E essas mulheres são construções, como alerta Angélica: “a mulher é uma construção/ deve ser”. O único dever ser (o único possível) da mulher, para alegria ou desolação, é a sua construção, o que torna tudo mais árduo e histérico, mas ao mesmo tempo, por não ser pré-fabricada, ali se apresenta o lugar da invenção. O que sabemos é que “a mulher é uma construção/ com buracos demais/ vaza” (Lacan diria, são mais amigas do real), e por isso elas podem enfrentar o ralo, aquele buraco escuro (Freud diria, dark continent) em que se depositam os excessos, os dejetos, as loucuras a partir dos quais ela tem que se inventar. Mas não será nada muito profundo (ainda bem!) já que as mulheres sabem dos semblantes e que tudo é bem ralo. Por isso elas podem ser “mulher de vermelho” e “mulher de valores” e “mulher de posses” e “mulher depois” e “mulher depressa” e “mulher de um homem só” e “mulher de respeito” e “mulher de malandro” e “mulher de regime” e, e, e. Há sempre aí um excesso, algo que excede o dito. O que fez com que Lacan dissesse que todas as mulheres são loucas, mas loucas não de todo (nãotodas). Na impossibilidade de formar o Todo, um universal feminino, haverá sempre um fora, que não circunscreve regras, que não obedece à biologia, à linguagem, à cultura. Neste sentido, as mulheres sempre serão mal-ditas.

Metafísica do consumo

Esse texto foi apresentado no final do ano passado nas Jornadas de Cartéis da EBP-SC e é fruto do trabalho que, junto com outros colegas, estamos realizando na Oficina de Política Lacaniana.

“Se as portas da percepção estivessem abertas, tudo apareceria para o homem tal como é: infinito”. É a partir desta frase de William Blake que Huxley escreve seu famoso livro “As portas da percepção” no qual narra as experiências com alucinógenos, e foi a partir dela que comecei a pensar a relação entre as toxicomanias e o infinito atravessada pelo discurso capitalista que obedece a uma metafisica do consumo infinito. Este interesse foi despertado depois que li uma matéria no IG, portal da internet, em que se contava da criação de várias “cracolândias” perto de onde se constrói a hidrelétrica de Jirau em Jaci-Paraná no estado de Rondônia. As construções das hidrelétricas no Brasil fazem parte das ações de um modelo econômico chamado desenvolvimentismo que acompanha o país desde, pelo menos, Getúlio Vargas, reaparecendo tanto em períodos democráticos quanto de exceção. Vistas como ampla fonte da criação de empregos e como modernizadoras de cidades no interior do Brasil, elas fazem parte do PAC – Programa de Aceleração do Crescimento –, as hidrelétricas são o modelo mais bem acabado da devastação ambiental no sentido amplo do termo, isto é, a devastação dos modos de vida considerados subdesenvolvidos e da natureza. A partir daí, comecei a pensar sobre o projeto político de desenvolvimento em relação à subversão lacaniana (sublinho o sub). Junto a isto, está a leitura dos toxicômanos como “consumidores ideais” e é nesta encruzilhada que me encontro: na tentativa de não generalizar, mas também de não subestimar as mudanças nos discursos políticos e econômicos.
Se outrora os usos das substâncias tóxicas estavam atrelados aos rituais mágicos que obedeciam, por sua vez, aos mitos que os orientavam, hoje o consumo das substâncias parece vincular-se ao puro rito destituído de mito. Ou seja, existe uma espécie de crise do simbólico, já que a articulação entre S1 e S2, articulação do mito, isto é, da ficção, se vê fragilizada no Discurso Capitalista elaborado por Lacan. Deste modo, resta a relação do sujeito com o objeto na qual se engancha em uma relação direta negando a castração em uma comunhão de consumo perfeito na radical aproximação, senão na confusão, de sujeito e objeto. Este limite da castração, uma vez negado, encontra-se no horizonte com a infinitização do gozo e, por consequência, é esta a hipótese que sustento, com a infinitização dos objetos e dos recursos: “isso se consome, isso se consome tão bem que isso se consuma”, diz Lacan acerca do Discurso Capitalista.
A estratégia desenvolvimentista se desdobra em um presente da cidadania e do exercício político validado pelo consumo mostrando que o espetáculo tem agido com uma inteligência ímpar. Mas é verdade que enquanto se pensar a política e a economia em um traço linear de subdesenvolvimento-desenvolvimento não haverá muitas alternativas. Isto exige, portanto, outra leitura de mundo e outra compreensão da economia que tente escapar do um fascínio narcisista que inevitavelmente se desenrola através da barbárie como índice incontornável para o desenvolvimento, porque o crescimento linear e ilimitado só pode se realizar através de uma extração da diferença, da imposição da homogeneidade. Exige, portanto, pensar uma política que subverta, que subdesenvolva, uma política lacaniana.
O crescimento econômico, o desenvolvimento do que se considera um subdesenvolvido instala em uma zona cinza o desejo e a dominação. E não era outra a definição de racismo elaborada por Lacan que previa seu triunfo no século XXI: anular a diferença do outro para fazê-lo desenvolver-se ao seu modo considerando-o um subdesenvolvido. Mais precisamente: o racismo é não suportar o modo de gozo do outro. Daí que o sistema capitalista engendre uma série de modos de vida ideais que excluem a diferença uma vez que, geralmente, vem anunciado como programa de igualdade ou “para todos”. No entanto, essa fórmula de liberdade, o projeto que promete a equalização, guarda secretamente – e com estratégias cada vez mais sofisticadas –, um amplo projeto de dominação e domesticação dos corpos. O racismo, o corte entre o bem e o mal, entre o que deve viver e o que deve morrer, aparece como um processo “natural”. Dominar para eliminar as contradições, e superar para promover a igualdade, serão os passos para se chegar ao desenvolvido.
Esta homogeneização dos comportamentos, esse desenvolvimento do subdesenvolvido, é resultado de uma política massiva que trata como patológica a recorrência às substâncias psicotrópicas. O que, por um lado, se apresenta como forma abrangente de acolhimento dos toxicômanos tendo como objetivo a sua reinserção na vida social –produtiva e rentável – tem no nome “vida normal” a marca de um viés autoritário. Em janeiro de 2012, o governo de São Paulo começou uma operação no centro da cidade de São Paulo, na região chamada Cracolândia, para “combater o tráfico de drogas”. A esta operação foi atribuído o nome de “Operação Sufoco” porque dela decorreram uma série de denúncias de flagrantes de abuso da força da polícia militar contra os usuários que habitavam o local. No Rio de Janeiro, recentemente, foi introduzido o uso de armas não letais para a contenção dos usuários de drogas. Esta ação é consequência de uma política policialesca de higienização da cidade para a realização da Copa em 2014 e das Olimpíadas em 2016. Uma verdadeira operação de guerra, já que os usuários são abordados pela polícia militar, o que caracteriza uma política que não conseguiu se desvincular do discurso de “war on drugs”, lembrado por Laurent, que se prolifera generalizadamente.
Neste sentido, estamos diante da consolidação da previsão de Nietzsche de que escrever a história dos narcóticos será escrever a história da civilização/barbárie da qual, na verdade, não se quer falar: “crack nem pensar” diz o slogan da campanha da RBS, ou novamente incorporado na lógica da guerra: “crack, é possível vencer”. Por outro lado, o uso abusivo das drogas lícitas, para ficar com um exemplo, a ritalina, não por acaso conhecida como “a droga da obediência” que produz como efeito terapêutico “o efeito zumbi” (e neste sentido, cabe lembrar da proliferação de filmes e séries que têm os zumbis como protagonistas geralmente após uma crise ambiental figurando, assim, um futuro sombrio da terra devastada), vem sendo aplicado sem grandes restrições, como mostra a estatística do Brasil como segundo maior consumidor do medicamento no mundo.
E esta história não é recente, foi no início da década de 60 e na década de 1970 que se fortaleceu o discurso do lícito e do ilícito em relação às drogas. E não custa lembrar que a América Latina enfrentava suas duríssimas ditaduras sob a batuta norte-americana que impunha tal discurso. O que se passava, diante do forte conteúdo moral de tais regimes de exceção, era um enorme esforço do controle do corpo para ordenar a política. Criou-se a guerra psicológica da perseguição com o Estado tendo o monopólio da paranoia, do medo e da violência (e não por acaso os moradores da cracolândia são chamados de “nóias”, uma variação de paranoico) sob o qual, como vimos, vive-se até hoje.
O que quero ressaltar é que a metafísica do consumo infinito, constitui irremediavelmente uma física. São os corpos – finitos e castrados, portanto – que estão em jogo aí nesta articulação entre o Discurso Capitalista e as toxicomanias que através da promessa de progresso – o ideal fadado ao fracasso do espírito capitalista já que não existe civilização sem barbárie –, da oferta de garantias, que gira em torno da apropriação de objetos, abre espaço para ler a toxicomania atrelada ao imperativo de gozo, como a radicalização mortífera da relação entre sujeito e objeto já que o Outro, a linguagem, tende à desaparição.