Lembrei imediatamente de Clarice Lispector que, como ninguém, consegue fazer uma dobra fundamental entre literatura e vida quando diz, em A paixão segundo GH, “viver não é relatável”. Esse, me parece, é um bom lugar para pensar a ficção porque a situa em um meio-dizer. Estar nesse lugar permite abrir algumas brechas no que a urgência do real nos impõe e ler a civilização de outra perspectiva: seus limites são nosso ponto de partida e não nosso ponto de chegada. A ficção, assim, nos ajuda a pensar que os limites dados pela linguagem são também nosso ponto de partida, e que se trata menos de falta ou incompletude, e sim de transformar a ausência de palavra num vazio onde se pode arriscar algo novo. Seu meio-dizer é a possibilidade de circunscrever alguma coisa que assola nossos corpos, pensamentos, nosso tempo, sem perder de vista que há o real. Digo isso para que a ficção permaneça com seu perigo, sua equivocidade, para que ela afete o corpo e não apareça, apenas, como uma forma terapêutica para conformar os dias. A ficção inventa uma língua outra, torce a língua para que, partindo do meio-dizer, se mantenha a enunciação vibrante. Isso, mais do que relatado ou ensinado, é transmitido. Portanto, acho importante tomar a ficção como o engendramento ativo de uma possibilidade de criação, se viver não é relatável, “terei que criar sobre a vida”, continua Clarice. É nisso, me parece, que Ailton Krenak aposta como uma ideia para adiar o fim do mundo. É bonita essa ideia de adiar, porque é fazer com que esse encontro seja empurrado para frente o máximo possível, e para tanto, é preciso inventar uma série de gambiarras no espaço e no tempo que sustentem e transmitam a vida. Nesse sentido, a ficção não resiste ao real, mas aposta que, com ele, é possível tecer outros lugares. Talvez esteja aí sua potência de revolta que mobiliza os corpos. Esse momento que vivemos é mais uma chance, a chance de contar, mais uma vez, “era uma vez…” como começam as histórias infantis, mas sobretudo aquelas que improvisamos quando não há livros a mão, essas que, mais do que fazer dormir, despertam as crianças para um interesse no mundo. Já estamos advertidos de que o final feliz é controverso, mas podemos, partindo do impossível da linguagem, arrancar desse mar de horrores alguma alegria do porvir.
*Resposta a duas perguntas a ser publicada na Revista Opiniães: 1. Qual a possibilidade da ficção e da poesia diante da urgência do real e dos limites escancarados de nossa civilização? 2. Qual a revolução ou resistência pode ser encampada em nosso tempo?